Kokçu, veja-se só, ousou falar quando quis e não quando o patrão mandou. Fez bem?
Aqui d’El Rei! Um jogador de futebol decidiu falar livremente, sem passar cavaco ao patrão. Estamos em 2024 e este cenário parece impensável, exceção feita a astros que pairam acima de qualquer clube e podem literalmente fazer o que querem.
Hoje, Orkun Kokçu, médio turco de 23 anos do Benfica, poderia, em certa medida, ser comparado a Marc Bosman, o jogador belga que em 1990 revolucionou a indústria porque — imagine-se — quis fazer valer os seus direitos enquanto trabalhador. Quis e conseguiu, como sabemos, abrindo uma nova era no futebol mundial.
Muito haveria por dizer sobre o atrevimento de Kokçu ao dar uma entrevista ao jornal neerlandês De Telegraaf sem autorização do Benfica. Sobre o atrevimento e sobre o estado atual das coisas, no qual assalariados aceitam silêncios inconstitucionais a troco de salários principescos. Ou sobre o facto de na maior parte dos casos os assalariados não receberem salários principescos mas estarem sujeitos às mesmas regras, porque se os grandes clubes as têm os menos grandes entendem que também devem ter. Do ponto de vista jurídico é discutível, do ponto de vista da indústria do futebol ainda mais, mas é o que temos e é com isso que teremos de continuar a viver: silêncios impostos pelos patrões e os futebolistas a falarem apenas quando os deixam ou quando os obrigam. Com a cartilha decorada, se possível.
Numa grande entrevista à publicação neerlandesa 'De Telegraaf', o médio internacional turco do Benfica confessa-se revoltado, não poupa Schmidt e reclama maior protagonismo na equipa
Orkun Kokçu desfez este paradigma. Importa agora perceber, antes de mais, se esta foi uma medida inteligente da sua parte.
Provavelmente não. Colocar em causa as opções do treinador numa altura altamente sensível da época é, no mínimo, uma prova de egoísmo perante a equipa, tendo em conta que os objetivos são coletivos.
Kokçu arrisca, diz o senso comum, pelo menos dois cenários: deixar de ser opção para Roger Schmidt e/ou pagar uma multa que há de estar prevista no regulamento interno do Benfica.
A multa, por mais que o seu valor constituísse para o comum mortal a independência financeira para o resto da vida, pouco beliscará o turco (sim, ele pertence ao grupo dos principescamente pagos).
Já quanto às opções de Schmidt, poderá ser caso para preocupá-lo, mesmo que jogando poucas vezes na posição 10 que diz ser a dele. A verdade é que tem sido opção.
Por outro lado, se Kokçu tem sido opção é porque faz falta a Schmidt, daí a reação cautelosa do treinador quando, depois de um treino em que esteve com o jogador, disse em conferência de imprensa que ainda não tinha falado com ele sobre o tema. Todos acreditámos, claro.
Por último, mas não menos importante, o Benfica: Kokçu é o jogador mais caro da história do clube, e um investimento de 25 milhões não pode ficar enrolado por causa de uma entrevista. Nem sempre uma corda esticada tem de partir-se. O mais provável é que o caso se fique por uma multa (real ou apenas comunicada) e cada um continue a sua vida. A 10 ou onde o treinador quiser.