Joguem à bola!
Se Ronaldo não render no Catar não será pelo que disse numa entrevista, mas por causa do peso inexorável dos seus 37 anos
C ORRIA o ano 2000 e, tal como hoje, a Seleção Nacional apresentava-se numa grande prova (o Campeonato da Europa realizado nos Países Baixos e Bélgica) com um caso atrelado, este muito mais polémico porque se tratava, nas vésperas do pontapé de saída da equipa de todos nós, do despedimento de um jogador do Benfica e aquele que, da chamada Geração de Ouro, podia não ser o melhor mas era, segundo estes olhos, o mais virtuoso, de seu nome João Vieira Pinto.
Até ao primeiro jogo com a Inglaterra as atenções dividiam-se entre a análise ao valor e classe da equipa de Humberto Coelho e as opiniões a favor e contra a saída forçada de JVP da Luz pela mão do mais polémico presidente de sempre das águias, João Vale e Azevedo. Recordo-me também das palavras desdenhosas de Graeme Souness (que passados 22 anos também foi uma voz ouvida na polémica do momento) a respeito do avançado que treinara no Benfica, que causaram enorme impacto na opinião pública portuguesa (ainda antes da era das redes sociais) e, naturalmente, na Seleção.
A história foi o que foi: João Pinto soltou o génio com aquele salto de peixe a cruzamento de Rui Costa (chegou a ganhar uma votação online em 2008 para o melhor golo de cabeça de sempre em Europeus) numa das partidas mais memoráveis da história da Seleção Nacional (vitória por 3-2 depois de estar a perder por 0-2), que empurrou Portugal para um fantástico Campeonato da Europa, apenas vergado nas meias-finais pela França de Zidane. Foi o melhor futebol que já vi Portugal praticar numa grande competição, independentemente do resultado final - o Euro-2000 está para mim o que foi o Mundial-1982 para os brasileiros: não ganharam, mas ver aquela orquestra em campo é o motivo principal de gostarmos tanto deste desporto.
S ERVE este regresso ao passado para tentar enquadrar a polémica gerada pela entrevista de Cristiano Ronaldo em Inglaterra e aquilo que realmente pode implicar para a equipa que está prestes a começar a participação no Mundial-2022, no Catar. Com todo o respeito pelas opiniões contrárias, tudo isso vale zero na hora de preparar um jogo e uma prova desta importância. A não ser que o avançado tivesse sido indelicado para com qualquer colega ou até com algum adversário amigo de algum colega, algo em que obviamente não acredito (esta crónica foi escrita antes da divulgação da primeira parte da entrevista ao jornalista Piers Morgan), tudo isto faz mexer com o parafutebol mas não com o futebol. Se porventura o Mundial correr mal a CR7 não será porque criticou dirigentes do Manchester United, o treinador do Manchester United, ex-colegas do Manchester United ou até jovens jogadores do Manchester United; se Cristiano não for o Ronaldo que ainda muitos esperam, será porque o peso inexorável dos 37 anos já não lhe permite ser tão decisivo como foi.
Mas ele sabe melhor que ninguém que este Mundial é uma derradeira provação. Num mundo cada vez mais polarizado, haverá os haters à espera do primeiro deslize e os ronaldianos de indicador no enter e discurso preparado para o combate nas trincheiras da web. Isso faz parte deste novo normal sem filtro numa era em que o meio termo parece coisa de gente ultrapassada, já o completo desvio de quem devia ter um mínimo papel de mediador entre a perceção da realidade e a realidade é menos compreensível e, até, aceitável. Considerar, por exemplo, que Bruno Fernandes e Ronaldo esfriaram a relação pessoal por causa da entrevista tendo como base um vídeo divulgado pela Federação Portuguesa de Futebol (que é apenas a entidade desportiva em Portugal que melhor controla as próprias ações) só pode resultar de ingenuidade ou do mais puro oportunismo (estarei mais inclinado para esta justificação).
É por estas e por outras que todos são colocados no mesmo saco, como se percebe pelo desabafo de Bruno Fernandes a João Mário, a propósito de o benfiquista querer «estragar as capas dos jornais» ao explicar na conferência de imprensa que tudo não passou de uma brincadeira. Isto é sobre o pontapé na bola mas o problema, infelizmente, é muito maior que um campo de futebol.