Já se pode falar em Flicki-Flacka?

A forma como os meninos do Barça se adaptaram ao alemão confirma que La Masia forma jogadores que entendem o futebol numa visão 360.º

Ainda estamos no final de outubro e muita coisa pode acontecer, mas não será exagerado afirmar que a transformação do Barcelona às mãos de Hans-Dieter Flick ameaça ser o grande acontecimento do futebol europeu em 2024. A linha ascensional já estava em marcha, mas as goleadas ao Bayern e ao Real Madrid formaram uma poeira dourada para fazer brilhar o trabalho de autor de um treinador alemão que ousou enterrar de vez o tiki-taka moribundo dos tempos de Xavi e aplicar uma nova forma de pensar e executar o jogo.

Não sei quantos puristas culés ficam abespinhados ao observar a verticalidade do futebol da equipa, mas não acredito que haja um adepto do clube que não tenha gritado de alegria com os quatro golos sem resposta no Santiago Bernabéu e a demonstração de superioridade que não é apenas circunstancial – em 2022 os catalães também golearam por 4-0 em casa do grande rival mas perderam o campeonato para os merengues.

A obra de Flick salta ainda mais à vista se recordarmos o contexto de início de época: um clube que só conseguiu fazer uma contratação sonante (Dani Olmo) e mesmo assim sem poder inscrevê-lo de imediato devido ao incumprimento do fair play financeiro da Liga espanhola; um namoro não correspondido a Nico Williams (Athletic Bilbao e campeão da Europa) e a consequente desvalorização do papel de Raphinha, jogador que fora agenciado pelo atual diretor desportivo Deco; uma equipa de muitos meninos; a lesão gravíssima de Ter Stegen, o único guarda-redes de renome do plantel e que iria ser, finalmente, o titular da seleção da Alemanha depois da despedida de Manuel Neuer.

A tudo isto reagiu Flick com uma calma olímpica e frieza germânica, aliado a novos métodos e regras que não seriam notícia noutros clubes (nos três grandes de Portugal, por exemplo) e cujo grau de novidade diz mais sobre o que não era feito no tempo de Xavi – como, por exemplo, obrigar à pesagem diária ou aos pequenos-almoços no centro de treinos e outros cuidados ao nível nutricional e das rotinas do dia a dia.

Mas se há algo no novo Barcelona que merece ser caso de estudo é a forma como jovens formatados pela escola La Masia conseguiram adaptar-se tão rapidamente a uma construção de jogo bem diferente daquilo que aprenderam em todas as suas etapas de crescimento. Basta pensar por momentos no seguinte: não é raro ver a equipa criar oportunidades de golo em jogadas com menos de 10 passes – no papel o Barça apresenta-se no mesmo 4x3x3 do passado, mas é tudo muito diferente. O que nos permite concluir (ou melhor, confirmar) que a riqueza da formação do FC Barcelona não consiste apenas na sistematização de uma ideia futebolística, mas na compreensão futebol em todas as suas variantes. O futebol total que há 50 anos encontrou em Camp Nou a casa certa para crescer.

Jogar futebol, melhor ou pior, todos sabem a este nível. Entendê-lo numa visão de 360 graus é outra coisa. E assim, por incrível que pareça, será mais fácil a Cubarsí, Casadó, Eric García, Bernal, Pedri, Gavi ou Fermín Lopez (refiro-me mais a estes porque são os que pensam o jogo, Lamine Yamal decide-o) interpretarem mais facilmente as ideias de Flick do que muitos alemães. Só na Catalunha podia nascer o Flicki-Flacka.