Futebol, essa paixão
Continuamos a confundir direito à crítica com ofensa à honra e isso não é normal nem aceitável
R ECUSO-ME a ver futebol sem romantismo. Acho que tudo aquilo que nos apaixona, que nos acelera o coração, tem forte componente emocional.
O futebol é paixão porque tem a capacidade de nos fazer saltar de euforia ou chorar de tristeza, de um momento para outro. De um golo para outro. O futebol mexe connosco, com os nossos sentimentos e autoestima. É maior do que nós. Domina-nos. E nós gostamos das sensações que ele nos oferece. Precisamos delas.
Mas é importante não confundirmos romance com lirismo. O romântico encontra poemas no que o apaixona. O lírico sentimentaliza em excesso. É demasiado intenso nas emoções, na forma como vê o alvo da sua paixão.
Sou romântico mas tento não ser lírico. O futebol que me apaixona, o que a maioria admira, não anda bem de saúde. Não é possível que ande porque os exemplos que repudiamos quase que abafam os que mais valorizamos.
Na semana que antecedeu o clássico vimos vídeos com ameaças camufladas a árbitros e respetivos familiares, tarjas com ofensas a adversários, tentativas de coação e intimidação. Ninguém estranha. Ninguém estranha porque o crime está normalizado. É aceite como habitual. A verdade é que o que aconteceu não foi muito diferente do que se vê, tantas outras vezes, com outros atores, em outros locais.
Há duas semanas, as ruas de Braga só não se encheram de pancadaria porque os spotters da PSP fizeram bem o seu trabalho, impedindo que dezenas de hooligans espalhassem o terror na cidade. Pouco depois o mesmo em Lisboa, a propósito de um jogo de futsal: tudo à cacetada, com arremesso de tochas e pedradas. Esta jornada, carga policial nas bancadas por razões pouco claras.
Há poucos dias, um treinador que faz comentários em televisão, decidiu chamar «nojentos» aos árbitros que dirigiram um jogo da sua equipa. Não o fez no calor do jogo, onde a efervescência atenua a reação. Fê-lo bem depois, a frio, de forma pública, nas suas redes sociais. Ontem um treinador em estreia num banco técnico perdeu o encontro e escolheu repetir aos microfones de uma rádio que tinha sido «roubado, bem roubado pelos árbitros».
Estas liberdades acontecem porque há uma sensação de impunidade tremenda, que vem de cima para baixo e que contagia gente que, num país a sério, jamais poderia ser agente desportivo. Continuamos a confundir direito à crítica (totalmente legítimo) com ofensa à honra e isso não é normal nem aceitável. O desporto que nos apaixona não pode ser conivente com esse tipo de comportamentos nem pode ser tolerante com esse tipo de pessoas. O desporto que nos apaixona merece que os seus representantes mais ativos tenham controlo emocional. Merece que respeitem o trabalho dos outros, ainda que exercendo o direito de o contestar. De cada vez que alguém ofende publicamente outrem, está não só a mostrar o seu calibre moral como a incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo. Isso é a antítese da forma como alguém deve estar neste meio.
Gostava que o futebol conseguisse encontrar forma eficaz de travar tudo isto, com firmeza e independência.
PS - Pedi aos meus alunos do IDS que me dissessem qual o momento positivo que mais os inspirou recentemente. O vencedor, escolhido pelos outros, foi o João Serzinando, que relembrou o momento em que dois treinadores (Filipe Martins e Álvaro Pacheco) tomaram café antes do jogo começar. Os bons exemplos também contagiam e têm de se repetir sempre.