Eterno abraço fraterno de Manuel Sérgio: muito além do Desporto
Foi muito mais do que um filósofo. Foi um mentor, um pensador que desafiava a visão simplista e reducionista que muitas vezes se impõe sobre a prática desportiva e, até, sobre a vida
Na quarta-feira, ao final da tarde, chegou a triste notícia do falecimento do professor Manuel Sérgio, uma figura que marcou de forma indelével a minha vida e a minha visão sobre o desporto. Tive o privilégio de privar com ele em várias ocasiões, partilhando ideias, perspetivas e experiências enriquecedoras. Nos últimos tempos, devido à sua condição física, esses encontros deixaram de acontecer, mas nunca deixei de sentir o calor do seu «abraço fraterno», que fazia sempre questão de enviar e que guardarei para sempre com carinho.
Sou um privilegiado por ter contado com a sua participação, de forma exclusiva, em dois dos meus livros. No primeiro, Liderator – A Excelência no Desporto, escrito em coautoria com o Luís Lourenço, o seu contributo foi inestimável, acrescentando uma profundidade de pensamento que enriqueceu e elevou a obra, tornando-a ainda mais esclarecedora. Após a publicação, honrou-nos com um artigo de opinião em A BOLA.
Sendo alguém de enorme importância para mim e para o Joel Rocha, quando decidimos escrever um livro juntos, um dos nossos primeiros desejos, antes mesmo de iniciarmos a escrita, foi contar com a sua participação. Hoje, é uma das personalidades que contribuíram para SER Treinador – A Conceção de Joel Rocha no Futsal, partilhando, mais uma vez, o seu conhecimento e oferecendo um olhar profundo sobre o desporto e a sua relevância na formação do homem que joga futsal.
Nascido em 1933 em Lisboa, Manuel Sérgio construiu uma trajetória notável, tanto no campo académico como no desporto. Foi professor universitário, deputado e filósofo, mas o seu maior legado é, sem dúvida, a obra escrita, onde abordou o desporto de uma maneira que ultrapassava as fronteiras da prática desportiva em si. «Quem só sabe de desporto, de desporto nada sabe» era uma frase que ele gostava de repetir, lembrando-nos que o desporto é, antes de mais, uma expressão do ser humano em toda a sua complexidade.
Manuel Sérgio desafiou o pensamento dominante sobre o desporto, integrando filosofia, pedagogia e ética na sua abordagem. Foi um dos grandes pensadores do desporto em Portugal, destacando-se pela sua visão crítica e pela capacidade de integrar o desporto na análise mais ampla da sociedade. A sua tese de doutoramento, «Para uma Epistemologia da Motricidade Humana», abriu novos horizontes para a compreensão do movimento humano, mostrando que a motricidade vai muito além do aspeto físico: trata-se de um movimento intencional e solidário, que envolve também a mente, o sentimento e a transcendência.
Mais do que um académico, foi um mentor influente para treinadores como, entre outros, José Mourinho, defendendo sempre a ética, a transcendência e o respeito pela integridade dos atletas. Na sua última entrevista, criticou a mercantilização do desporto e os limites que o Deus-lucro impõe à saúde dos jogadores, reforçando a sua visão humanista e socialmente consciente.
Manuel Sérgio era um humanista que via o desporto como uma oportunidade para o desenvolvimento integral do ser humano. Para ele, a superação era essencial para o crescimento pessoal e coletivo.
O legado de Manuel Sérgio transcende a sua obra escrita, influenciando não apenas os treinadores, mas todos aqueles que se dedicam ao campo da educação física, da pedagogia e da filosofia. O seu impacto perdura na formação de profissionais e na valorização do ser humano em todas as suas dimensões.
Para mim, e para muitos outros, a sua partida deixa um vazio, mas a sua obra permanecerá eternamente como uma luz a guiar os que seguem o seu caminho.
Recordarei sempre o poema que me partilhou - Lágrima de Preta - de António Gedeão, desafiando a visão simplista do mundo, mostrando que a verdadeira essência das coisas vai muito além daquilo que os nossos olhos podem ver e que a ciência consegue provar:
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Toda a gente percebe que uma lágrima é muito mais do que, simplesmente, água e cloreto de sódio. A missão que Manuel Sérgio assumiu durante décadas a fio foi ensinar-nos a olhar o desporto não apenas como uma prática física, mas como um caminho de superação, de aprendizagem e de transcendência.
Obrigado por tudo. Até sempre, professor.
«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.