Esta coisa do corporativismo
Estava habituado a lidar com isto em relação aos jogos dos três grandes. Dos árbitros, não
HÁ assuntos que nunca se esgotam. Por muito que falemos neles, repetem-se, embora de formas distintas. É como beber um café ou comprar um jornal: fazemo-lo todos os dias e nunca é igual. Nunca se repete. Com a noção que todos temos da expressão «corporativismo» (não exatamente a mesma que a oficial, ligada a ideologias político-económicas), acontece a mesma coisa.
A primeira vez que me chamaram «corporativista» foi há séculos. Não me lembro em que situação, mas não tenho dúvidas que terá sido a propósito da defesa a alguma crítica desmesurada a um árbitro ou arbitragem mais polémica. Depois disso já a terei ouvido centenas de vezes. Curiosamente, sinto que poderia dizer exatamente o mesmo a muitos amigos que ainda hoje me chamam «defensor intransigente da classe». É que, vários deles, na sua profissão, fazem igual ou pior, só não têm noção disso. Faz parte.
Na ótica de quem já palmilhou muitos quilómetros nesta estrada, isto de ser «corporativista» não é necessariamente pejorativo, se alicerçado em pressupostos de verdade e justiça. Por exemplo, se eu vir que alguém insiste em chamar a uma má arbitragem um roubo de igreja, pois claro que defenderei a minha equipa com unhas e dentes. A crítica à competência técnica é uma coisa, o ataque gratuito à integridade é outra. Se, por acaso, alguém ameaçar ou agredir ex-colegas meus (ou as suas famílias), obviamente que serei corporativista até à quinta casa. E para lá disso.
Coisa diferente, bem diferente, é a cegueira total. O tal corporativismo ferrenho, alheado e quase patológico, com que tantas classes tendem a defender-se. A defender-se desproporcionalmente (ou ignorantemente) de ataques que, por vezes, nem sofreram. De críticas fundamentadas, construtivas e sérias que confundiram com assalto à mão armada.
Um destes dias, no âmbito daquele que é o meu trabalho - repito, o meu trabalho -, fui confrontado com um conjuntos de mensagens privadas, porque escolhi comentar uma decisão errada, muito errada, que um árbitro tomou durante determinado jogo de futebol.
A opção de o fazer foi a mesma de sempre: apelar à concentração futura e tentar traçar uma linha vermelha a algo que, em alta competição, jamais pode acontecer. Faço exatamente o mesmo nas decisões fantásticas. Sei o quanto isso motiva, ajuda a autoestima e torna-nos mais confiantes.
No caso em apreço, não estou naturalmente a falar da interpretação de penáltis, da cor de cartões ou das malditas intensidades. Estou a referir-me a um erro muito claro, óbvio e evidente, que o árbitro - depois de bem alertado pelo seu VAR - decidiu manter, apesar de ver e rever as imagens junto ao relvado. Imagens totalmente elucidativas sobre qual devia ser a única decisão a tomar. O problema do VAR é que diminuiu drasticamente o elástico da tolerância antes dado aos árbitros.
Ora a pequena legião de fãs desse ex-colega (que, coitado, nada tem a ver com este filme) exaltou-se, porque entendeu que essa análise técnica - que teve o cuidado de nunca mencionar o nome do árbitro - era um ataque vilão desferido a uma enorme promessa da arbitragem nacional. Como se essa ou qualquer outra promessa algum dia pudesse crescer ou evoluir acima da crítica (construtiva).
Esse tipo de mentalidades não mora apenas nos escalões mais baixos. Cá em cima, a um nível bem mais alto, há quem pense o mesmo: «Se dizes bem de mim és o maior, se dás cacetada, não vales nada.» Se calhar é por causa disso que nunca um ex-comentador de arbitragem foi dirigente dos árbitros. Muito terceiro mundo.
Confesso que estava habituado a lidar com isto em relação aos jogos dos três grandes. Dos árbitros, não. Mas é bom sinal. Quando a porrada é transversal, é sinal que o caminho está certo. E, claro, esse vai continuar na mesma linha. Doa a quem doer. É como é... e é assim.