E se Ancelotti percebeu tudo antes dos outros?
Rüdiger e Vinícius Júnior festejam a passagem à final da Liga dos Campeões com o seu treinador, o italiano Carlo Ancelotti (JUANJO MARTIN/EPA)

E se Ancelotti percebeu tudo antes dos outros?

OPINIÃO10.05.202410:00

Não será o ‘velho mago’ de 64 anos o verdadeiro revolucionário do futebol moderno na sua defesa da criatividade perdida em intermináveis partidas de xadrez entre equipas muito iguais?

Os mais velhos são quase sempre sábios, mesmo que o tempo já não seja bem o seu e tenha sido arrebatado por outros, a transbordar energia e testosterona, dispostos a quebrar tantos paradigmas quantos puderem até assinarem com o apelido uma nova lei. A sua.

Sem se impor em mais do que seja pelos resultados, Don Carletto chega todos os dias até nós como poderia aparecer para um treino do Milan pouco depois do virar do século, quando ainda morava, a mais de 130 quilómetros, em Parma: de helicóptero, pilotado pela esposa, e charuto na boca, óculos escuros e look à James Bond. Ancelotti, Carlo Ancelotti. Shaken, not stirred!

Aos 64 anos e já avô, porém com o estilo e a classe de sempre, nunca o verão vergar-se com o peso dos anos, ao ponto de sobreviver com distinção aos abanões do negligente Rüdiger após mais uma épica reviravolta e de desatar a cantar o hino multimilionário num concerto a uma só voz, como se tivesse ganho algo importante pela primeira vez e, por essa razão, fosse incapaz de encaixar e conter toda a emoção que o inundava.

Talvez o devamos ouvir ainda mais por isso, porque nunca haverá quem pareça, em algum momento, mais atualizado do que ele, mesmo que o ponham à sombra do Vesúvio ou na metade azul de Liverpool, uma dimensão inexplicável à parte, tal como ouvíamos de Rod Serling na juventude, naquela série a preto e branco, já em reposição: There is a fifth dimension, beyond that which is known to man. It is a dimension as vast as space and as timeless as infinity. It is the middle ground between light and shadow, between science and superstition, and it lies between the pit of man’s fears and the summit of his knowledge. This is the dimension of imagination. It is an area which we call The Twilight Zone.

Ou ainda que seja mais capaz de se reinventar, sempre se ajustando aos jogadores ao dispor, como quando criou a tática da árvore de Natal, sem extremos e com dois 10, tudo afunilado pelo meio, por causa de Rui Costa e depois a deixou cair até libertar sobre o relvado todo este caos criativo, porque não há soco mais doloroso nas partes baixas do que perder uma final que se ganha ao intervalo por 3-0, só porque um tal de Stevie-G puxou dos galões por todos os scousers do planeta e encaminhou a decisão para os malditos penáltis. O maior desafio à lógica do futebol italiano, lançado por Gerrard.

O que Ancelotti nos mostra sempre que se atravessa à nossa frente é que há um outro caminho, tão válido e valioso como o de aqueles que o contradizem, embora sempre em ações e nunca por palavras, porque não se faz tal desfeita a um cavalheiro e com um tão grande passado. Um caminho que pode levar a cinco vitórias em seis finais da Liga dos Campeões quando o segundo melhor só conseguiu lutar por quatro.

Ele bem nos avisa, sempre que os favoritos são deixados para trás a lamber as próprias feridas, sejam estes Guardiola ou novos Guardiola, versões 2.0 de uma obsessão pelo controlo e pelo domínio bem para lá do normal. Ou somos nós que nos recordamos após mais uma vitória do que chegou a afirmar a dada altura. «O erro da nova geração de treinadores é a informação que se dá aos jogadores para o momento em que têm a bola na sua posse. Quando não a têm sim, é importante, porque se trata de concentração, sacrifício e coletivismo, porém com esta nos pés dependerá sempre da sua criatividade. Se Vinícius ou Rodrygo se sentem confortáveis mais por fora, sobre as alas, quando a equipa tem a bola, não lhes vou dizer para ficarem dentro. É uma interpretação individual do jogo. Não o faço, porque não quero tirar a criatividade de ninguém.»

E mais ainda desconstruía: «Os jogadores de qualidade não terão nenhuma dificuldade em se adaptarem a um novo clube. A qualidade vai estar lá sempre porque o futebol não é assim tão complicado. O relvado tem sempre o mesmo tamanho, os adversários são sempre onze, a bola é a mesma e a baliza não se move. O futebol é simples.»

Talvez estejamos então a complicar o jogo em demasia. Com uma «liderança tranquila», o título da sua biografia, Carletto cria o ambiente perfeito para que a equipa se expresse na plenitude, responsabilizando os jogadores que coloca em campo pela estrutura defensiva, que se deve manter o mais coesa e impenetrável possível. Se há algo de tradição all’ italiana nessa procura do equilíbrio – e não estou a falar de catenaccio ou sequer de resultadismo, não se trata de nada disso –, o restante da abordagem até deixará uma sensação contranatura para um transalpino, quando deixa extravasar essa arte purista, que transpira dos seus atacantes, ainda dignos representantes do mulato malandro que estabeleceu o ADN do futebol canarinho nas décadas de 40 e 50, e que é suportado ainda pela inteligência e racionalidade de Kroos, Modric, Bellingham, Valverde e tantos outros.

Para Don Carletto, não há razão para que os jogadores não se sintam confortáveis nos respetivos papéis, e os interpretem com alegria. O treinador torna-se a figura paternalista na qual todos confiam e respeitam, e este por sua vez, certificado por tantas conquistas anteriores, também sabe que não tem razões para deixar de acreditar no processo, mesmo quando unidades nucleares como Courtois, Militão, Alaba, Vinícius, Camavinga e Tchouaméni ficam indisponíveis. De uma forma ou de outra, todos sabem que o velho mago vai resolver o problema antes cedo do que tarde, sem emitir um único ai.

O técnico não é o único a acreditar que o futebol está cada vez amarrado a si próprio, e os jogadores presos por elásticos bem mais apertados do que os que Arrigo Sacchi, nas décadas de 80 e 90, colocou à cintura dos seus atletas, entre os quais o próprio Ancelotti, para aprenderem pela repetição a distância que tinham de estar uns dos outros.

Não é por acaso que as equipas jogam cada vez mais da mesma forma com ainda menos espaço disponível, e que se procurem soltar mais a intuição e o engenho dos futebolistas, como no relacionismo, também conhecido por jogo aposicional. Já Ancelotti nunca caiu no engodo e talvez nos esteja a mostrar mais uma vez que é ele, logo o mais velho, o revolucionário e todos os outros apenas aborrecidos conservadores.