Deixem o Benfica ser o Benfica
Cerca de 1000 sócios do Benfica estiveram presentes na última Assembleia Geral realizada na noite de sexta-feira (Foto: A BOLA)

Deixem o Benfica ser o Benfica

Selvagem e Sentimental é o espaço de opinião semanal de Vasco Mendonça, consultor de Marketing

Já aqui escrevi, há uma semana, sobre a experiência importante que é participar numa Assembleia Geral do Sport Lisboa e Benfica. A da semana passada não foi excepção, não necessariamente pelo chumbo das contas, que também é relevante, mas pela dimensão humana da coisa. Cheguei a casa por volta das 3 da madrugada, tal como outros 1000 sócios, com a sensação de que não fora tempo desperdiçado. A propósito dessa ocasião e das reflexões que foi produzindo nos dias seguintes: li, como faço sempre, a opinião de José Manuel Delgado publicada aqui, e tenho algo a obstar quanto à ideia de que o destino do clube não pode nunca ser determinado pelos sócios que participam nestas reuniões, sob pena de refletir a vontade de um microcosmos.

Em primeiro lugar, discordo porque não me parece que essa fosse a atitude de quem esteve presente. Ouvi muitos contributos construtivos ao longo da noite, ainda que tenham assumido um registo mais crítico em alguns momentos, e ouvi muitos contributos que não tentaram senão informar a liderança do clube para a mudança que tem de ser operada. Em segundo lugar, parece-me que voz ali presente, fosse de contestação ou crítica à direção, ou de apoio a esta, é representativa de vontades várias que residem no clube. Da mesma forma que uma sondagem a 1000 indivíduos pode ser relativizada, mas é habitualmente capa de jornais por expressar uma tendência ou por vezes um empate entre vontades, esta Assembleia Geral também me pareceu um bom barómetro.

Depois, e não considero que seja mero pormenor, há que louvar o tempo de que tanta gente abdica para vir discutir o estado da relação que mantém com o seu grande amor. São pessoas com outras vidas para viver, que escolheram esta: ouvir explicações várias sobre uma multitude de temas, muitos bastante fénicos, numa tentativa de compreender o momento do clube e pensar coletivamente sobre o que se passa. Isto é particularmente pertinente num clube com um défice tão grande de liderança consequente, como é o Benfica hoje. Não querendo de maneira nenhuma caricaturar negativamente estas reuniões, é notável que tanto associado maluquinho tenha esperado pacientemente pelos parcos ou preocupantes esclarecimentos do presidente do Benfica, e tenha ouvido atentamente do princípio ao fim, quase sem interrupções. E é assim que deve ser, independentemente das divergências. Eu que o diga, que já tive a infelicidade de interrromper o presidente numa Assembleia Geral e acabei a penitenciar-me nesta página.

Sob pena de parecer parte interessada, porque também lá estive, julgo que a atitude de quem ali esteve madrugada fora deve ser louvada, e nada mais. Ninguém está nestas reuniões para realizar golpes de estado. Talvez seja isso que parece quando se isola 2 ou 3 episódios para incendiar a internet, ou quando alguns dos presentes cedem à tentação de explicar ao mundo lá fora o que está a acontecer.

A primeira reação a isso, causada pelo meu cinismo em relação à natureza performativa que hoje define o comportamento de algumas pessoas nas redes sociais, é de desagrado. Não me parece bem que os sócios contribuam para um espectáculo que depende sempre da dramatização para vender bilhetes.

A minha segunda reação é bastante mais compreensiva, e acontece quando me lembro dos muitos milhares que gostariam de lá ter estado e não puderam, porque a sua vida pessoal ou profissional não lhes permite. E parece-me que a solução é evidente. Estas reuniões devem ser acessíveis a todos os sócios que a elas queiram assistir, seja no canal de televisão do clube, seja através do site. Sim, existem riscos em tornar a Assembleia Geral mais um evento televisionado em direto ao longo do qual os incidentes terão holofotes apontados na sua direção, mas também será a oportunidade de se constatar que estas reuniões são, de forma esmagadoramente maioritária, demonstrações de afeto ao Benfica, mesmo que por vezes denotem um amor extremoso, que, no caso do Benfica, tende a ser o melhor.

De resto, se houve coisa que ouvi várias vezes ao longo da noite, foi que, independentemente das diferenças, permanecemos unidos na vontade de ver o Benfica somar mais vitórias e sair mais forte de cada confronto com os seus adversários. Acontece que, contrariamente ao que alguns possam pensar, o Benfica é mesmo dos sócios. Essa máxima não é uma frase para usar em t-shirts ou postais. É em ocasiões como esta que a vemos ser levada a sério, e demonstrada de forma séria por quem lá esteve. Não vi nada nesta Assembleia Geral que diminuísse a probabilidade de a bola entrar na baliza no dia seguinte. Poderá alguém alegar que só não marcámos 10 ao Gil Vicente no dia seguinte porque o sócio a, b ou c disse das boas ao presidente, mas, e isto deverá ser especialmente próximo de quem viveu décadas num balneário, não será bem assim que a bola rola.

Sim, o Benfica tem desafios enormes pela frente esta época, a vários níveis: no plano diretivo, no plano desportivo e no plano financeiro. E sim, todos esses temas continuarão a ser discutidos, até porque a realidade assim o exige. Se há coisa que esta última Assembleia Geral demonstra é que o Benfica estará sempre em melhores mãos enquanto tiver sócios acordados até às 3 da madrugada a cuidar dele. Vou mais longe e digo que é também um comportamento que pode e deve ser mimetizado por quem decide os destinos do Benfica, nomeadamente os membros dos órgãos sociais e da SAD. Ali, naquele pavilhão, vi uma enorme fome de vitórias, e vi também caminhos para lá chegar, que passam necessariamente por uma melhor gestão financeira nos próximos exercícios, o tema central de discussão naquela noite.

Pela parte que concerne diretamente os sócios, fica o repto e arrisco responder por mim e por muitos sócios presentes: deixemos o Benfica continuar a ser exatamente assim. Plural, democrático, crítico e obcecado em ganhar mais. Posso garantir que não saímos dali mais perto de uma derrota. Não será isso um reforço da identidade do clube? Deixem o Benfica ser o Benfica. Quem não gostar deste caminho ou achar que ele colide com a direção do esférico, terá que se habituar à crítica, até às horas que for necessário. Se esse alguém tiver a responsabilidade e o poder conferido pela democracia benfiquista, que  mude decisivamente o rumo de muitas coisas. No dia em que assim for, com esta ou com a próxima direção do clube, lá estaremos a criticar e a elogiar até às 3 da madrugada, sempre com o intuito de tornar o Benfica melhor.

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