CR7 e a Matrix que (o) alimenta
O único vencedor do futebol saudita é Cristiano; o jogo em si não convence ninguém
Ronaldo está na Arábia há um ano, mais coisa menos coisa. Nestes meses, tem, sobretudo, engrandecido a lenda. Porque é uma bem linear, feita de golos e recordes e, na verdade, dificilmente teria encontrado melhor sítio onde pudesse ser o que queria continuar a ser. Joga e marca. Está lado a lado com um Haaland ou um Mbappé sem que na realidade esteja. É a sua realidade aumentada.
Apesar de se ter deixado cair de uma Big 5 para uma liga terceiro-mundista, ainda assim maquilhada com algumas figuras no prime da carreira, o capitão da Seleção Nacional não perdeu grande coisa. Aliás, até terá ganho. Recuperou um estatuto que se encontrava em risco com Fernando Santos, graças à escolha (calculada ou não) de um selecionador que sempre respeitou estatutos e núcleos duros, nunca foi de roturas e até estava habituado a convocar gente que aí jogava. Numa fase de qualificação tremendamente fácil e não apenas tornada fácil, foi figura óbvia.
Podemos achar que não vestir fato de gala no Bernabéu, beber a rivalidade do Camp Nou ou a energia de Anfield, ou até deixar de sentir a reverência de Old Trafford e o glamour do Parque dos Príncipes afetaria qualquer um, mas a ele não. Assentou a carreira, a partir de certa altura, em três pressupostos: ele, a bola e baliza. Nada e ninguémmais. Racionalizou e adaptou-se. A ferocidade manteve-se, o bicho continuou bicho.
Ao contrário de Ronaldo, tenho dúvidas de que o futebol saudita tenha ganho algo mais do que exposição. Falo do futebol. O país, sim, lavou e continua a lavar a face como queria. Pouco se fala dos atentados aos direitos humanos e o povo continua entretido nos seus coliseus. Agora, ainda mais entretido.
Já se veem entretanto as primeiras falhas na Matrix. Já se ouve Henderson e Firmino a querer voltar para casa. Provavelmente, antes acharam que podiam viver sem o jogo e arrependeram-se. Porque é um jogo sem o jogo, jogado com uma bola feita de notas de dólar. Sem alma, talvez. Algo sempre algo plástico, pouco natural.
Será que algum de nós já foi capaz de assistir a um encontro saudita durante 90 minutos, mesmo com Ronaldo em campo? Confesso que não, pouco me interessa. E tenho muitas dúvidas, a não ser em dia de desmame, por já não se ver futebol há algum tempo, ou em segundo ecrã para que ofereça o barulho de fundo de que por vezes precisamos, que alguém o faça. Claro que queremos ver os golos e festejar com Ronaldo, perceber o que acontece a Jesus e se Neymar, quando andou bem, fazia das suas, mas haverá mesmo algo mais?
O poço do dinheiro não tem fundo e o investimento continuará a jorrar, preenchendo os espaços ainda não ocupados pela Matrix. Mais serão convencidos. Outros não. Lembro-me das palavras sempre oportunas de Bernardo Silva: «Seria mentira dizer que não pensei nos milhões, mas quero jogar meias-finais da Liga dos Campeões, marcar ao Real Madrid, vencer a Champions, não quero abdicar disso.» Isso é só gostar de futebol.