Covid-19
Há males que vêm por bem. Ouço isto desde pequenino e não é à toa. O provérbio significa que há sempre qualquer coisa de positivo a retirar, por muito mau que seja o momento ou o contexto.
O coronavírus já deixou de ser a tal gripezita de números inócuos que tantos ridicularizavam para passar a ser uma espécie de nuvem cinzenta que paira sobre as nossas cabeças, gerando um misto crescente de receio, expectativa e apreensão. É normal que assim seja.
O ser humano, capaz de pôr toneladas de aço sobre o mar ou milhares de aviões a circular no ar, está preparado para tudo menos para aquilo que não está. Somos fantásticos a enfrentar o que depende de nós, mas demasiado frágeis e inseguros a lidar com variáveis que não controlamos. Esta é a nossa natureza. Já o sabíamos de cada vez que enfrentávamos incêndios, tempestades ou terramotos demolidores. Sabemos agora de novo porque, mais uma vez, temos que lidar com um inimigo (meio) desconhecido, de alcance incerto e final imprevisível.
Desta estirpe, das suas eventuais consequências e do impacto global que poderá ou não ter no mundo, não me pronuncio. E não me pronuncio porque nada sei e nada acrescentarei de novo. O que sei é que estou francamente otimista, porque confio na capacidade incrível de pessoas dedicadas e competentes. Sei que vão dar cabo dela. E sei também que a impressão digital que o novo corona está a deixar é diferente, porque abrangente: é que o bicho não escolhe raças, géneros ou religiões. Não seleciona zonas de ação nem faixas sociais. Essa sua característica, de arma maciça global, tem elevado a fasquia e provado que o homem, quando necessário, sabe priorizar.
Sabe dar valor às coisas que importam. Sabe enfrentar o perigo quando o perigo espreita. E sabe fazê-lo em equipa, como um todo. Como se todos fossem um só. É o instinto de sobrevivência a falar mais alto do que qualquer quezília doméstica, disputa territorial ou guerrilha clubística.
Um exemplo básico: por cá, vivemos o futebol com intensidade e drama. Olhamos para os clubes e para as suas aventuras e desventuras como se tudo isso fosse a última bolacha do pacote. É também uma espécie de doença, que contagia miúdos e graúdos, há muitos e muitos anos. Não mata (?), mas gera sintomas bem tipificados: surtos de alegria e tristeza ou de sorriso e choro. Depende da vitória ou derrota, da ilusão ou desilusão.
Mas a verdade é que até essa paixão parece tornar-se pequena perante uma ameaça maior. Há, a cada dia que passa, mais e mais jogos cancelados e mais e mais provas anuladas. Há cada vez mais competições adiadas. Há mudanças de hábitos nos atletas e cuidados redobrados entre os adeptos. Até o gigante futebol e toda a máquina que o alavanca parecem agora vergar-se a algo superior. Aliás, não se vergam apenas. Relativizam. Priorizam. Páram, se necessário, porque sabem que o jogo da vida é mais importante do que qualquer jogo na vida.
Há males que vêm por bem. Que este apurado espírito de sobrevivência dê a todos uma lição sobre onde devemos encaixar, nas nossas vidas, a ordem e sentido que damos às coisas. O futebol é importante, mas de importante tem muito pouco. Há muita gente que devia aproveitar este período intermitente para refletir sobre isso.