'Chicotadas psicológicas' no futebol
Daniel Sousa, aqui no Gil Vicente, foi despedido no SC Braga após a primeira jornada da Liga (Foto: A BOLA)

'Chicotadas psicológicas' no futebol

OPINIÃO08.10.202409:00

Esta Tribuna Livre, espaço de opinião em A BOLA, é da responsabilidade de José Neto, Professor universitário

Decorreu cerca de mês e meio nesta época e já próximo de 30 % dos treinadores sofreram a vicissitude da liderança no clube para o qual se prepararam.

Na época passada, Portugal liderou em termos europeus esta situação deveras preocupante com 12,4 despedimentos em confronto com a Espanha, com 10, Itália (9.8), França (8,4), Alemanha (8,2) e Inglaterra (7,6). Tendo em conta a situação presente, como será o futuro?

Todos sabemos: quando os objetivos não são conseguidos e o peso insuportável das expetativas deixa um rasto de intranquilidade, a equipa entra numa espiral de dúvida sobre si própria, os jogadores traídos por resultados negativos, são originários de maior dificuldade de concentração, vê diminuído o seu estado de alerta onde sempre espreita uma crise de raciocínio, dando eco ao veneno da memória, ocasionando um estado crítico em que por vezes o medo de perder supera a vontade de ganhar, sobrando para o elo mais fraco a possibilidade de romper a já frágil componente congregadora de readmissão de comportamentos, dando origem às tão famigeradas chicotadas psicológicas.

Também sabemos que o futebol se nos apresenta como um espetáculo muito especial, transitando para as evidências do alto rendimento discussões alargadas, clamando um foco atencional generalizado, em que o falhanço dum golo de baliza aberta, os passes errados, uma falta que não é sancionada e no imediato solta-se um turbilhão de ira, medo e raiva. A labareda de impropérios avança sem identidade da bancada para o centro da luta, onde toda uma gente, aproveitando a onda de azedume e oportunidade, clama para si a verdade, tantas vezes traída de justiça e coerência.

Nesta sequência do maior espetáculo do mundo e sendo o futebol uma atividade, como refere Javier Marias ... «onde não basta ganhar, mas ganhar sempre» e continua: «Um escritor, um arquiteto, um músico, numa obra apenas, podem dormir uma sesta depois de terem criado um grande romance, um maravilhoso edifício, um disco inesquecível. O futebol, ao contrário, não aceita o descanso nem o divertimento e de pouco serve possuir um extraordinário palmarés ou ter conquistado um título no ano anterior ... Ter sido melhor ontem já não interessa hoje, para não falar amanhã. A alegria passada nada pode fazer contra a angústia presente. Também não há durante muito tempo tristeza ou indignação, que de um dia para o outro se podem ver substituídas pela euforia e santificação.»

Como sabemos, a modalidade de futebol, pela sua dinâmica prática, constitui um dos fenómenos desportivos e sociais com superior importância, constituindo os clubes um foco de pressão permanente pela conquista de resultados positivos, sendo o treinador nas funções que lhe estão adstritas o principal responsável pela gestão operacional para o rendimento na obtenção do sucesso.

Quando os resultados dos objetivos propostos não são conseguidos, processa-se a quebra de laços e daí a demissão do treinador, como alvo número um a abater.

As causas inerentes às célebres chicotadas psicológicas confinam-se em primeira instância e de forma genérica aos maus resultados, sendo estes passíveis de gerar a insatisfação dos adeptos, dos diretores e dos próprios jogadores, visualizando-se um ambiente adverso quer no balneário, quer fora do mesmo, instalando-se uma crise de identidade coletiva comprometedora, gerando-se a substituição nem sempre explicada à luz das verdadeiras causas.

Como consequência a esta alteração de estatuto regenerador de liderança, assiste-se muitas vezes a uma fase imediata de aquisição de resultados positivos, tendo alguns jogadores (até aí suplentes) a possibilidade de justificar a chamada à função (desculpabilizando-se), a direção do clube a prestar mais atenção e apoio participativo, possibilitando quantas vezes, ao novo técnico, a abertura a novos jogadores a contratar, fazendo-se constar ainda a melhoria adicional de prémios de conquista.

Imediatamente me acorre à ideia algumas questões que na minha perspetiva se tornam pertinentes:

1 — Haverá necessidade de equacionar um perfil ideal para um treinador?

2 — Saber (apenas) muito de técnica e tática é uma condição necessária para se ser um bom treinador?

3 — A experiência como jogador de alto nível torna-se fundamental para se assumir como treinador mais preparado para o sucesso?

4 — A história e tradição dum clube, bem como a cultura e exigência dos seus diretores, associados e adeptos, implicam a contratação dum treinador com um perfil especial?

A resposta surge nesta conformidade que tentarei explicitar:

Saber muito de técnica e tática é apenas uma condição necessária, mas não suficiente para se ser um bom treinador.

Ser bom treinador é um conjunto de pequenas coisas e comportamentos que vão sendo aprendidas através da experiência e treinadas através duma formação adequada, procurando por isso uma constante busca do saber, baseado no estudo e investigação e sustentado na experimentação.

Procurar sempre transmitir o hábito de ser paciente e persistente, tornando os treinos motivantes, criativos e organizados.

Mostrar empenho, compromisso, criando um código de conduta onde se imponha a dignidade e respeito — daí ser também um educador/amigo/conselheiro/líder.

Deve ter a capacidade para refletir, antecipar, planificar, analisar e decidir perante situações de stress, incerteza e ambiguidade.

Um bom treinador não tem de ter sempre respostas para tudo o que se lhe pede. Ninguém, seja em que domínio científico for, tem respostas para tudo.

O treinador eficaz é aquele que está aberto a todas as opções possíveis de forma a responder apropriadamente nas diferentes situações e problemas com que se confronta a competição. Ao reconhecer que não sabe tudo ou não conhece tudo, ele está a ser verdadeiramente humano.

Deve ser capaz de transmitir aos jogadores os valores da honestidade, a firmeza de convicções, integridade, respeito, exigindo o cumprimento de normas internas da equipa, costumes e tradições que reforcem e estimulem o orgulho e desempenho da equipa por si orientada.

Na comunicação com os jogadores a sua mensagem deverá ser baseada na seriedade e otimismo, assumindo o que pretende dizer, com clareza e sem duplo significado, distinguindo os factos das opiniões e ainda sintonizada com a formulação de objetivos positivos, específicos, desafiadores, mas realistas.

Ser por natureza otimista. Deve saber descodificar os fracassos, transformando-os em êxitos — a principal diferenciação entre os otimistas e os pessimistas está na forma como explicam as suas derrotas. Os pessimistas atribuem as culpas às suas próprias deficiências — uma imagem negativa que têm de si próprios. Por outro lado, os otimistas encaram o futuro com confiança — cada derrota encerra a semente para o futuro êxito.

Transmitir uma imagem de serenidade, competência, liderança, responsabilidade e... cultivar sempre a capacidade organizativa, sabendo que: sem organização não há regras; sem regras não há disciplina; sem disciplina não há resultados e... sem resultados não há SUCESSO!

Quanto ao ponto de análise correspondente à história e tradição de um clube, bem como a cultura e exigências dos seus diretores, associados e adeptos que possa implicar na contratação de um treinador com um determinado perfil, sem dúvida que me parece fundamental e necessária esta simbiose vivencial, pois ninguém pode oferecer aquilo que não possui. Nestas circunstâncias, e para não correr riscos desnecessários, sou a favor de que num clube que tenha por objetivos passos sérios na conquista de um futuro com êxitos, deveria fazer constar, entre outras exigências:

— Organizar uma rede de observação e scouting, a partir das classes mais jovens.

— Possuir nos seus quadros treinadores cujo perfil de personalidade e liderança, seja ajustado ao que foi referido anteriormente. Entendo mesmo que se deveria constituir no clube um conselho técnico (com assento de todos os treinadores e restante staff técnico), reunindo de forma periódica no sentido de ver bem explícita esta filosofia de um crescer sustentado para um ganhar continuado.

— Criar um gabinete de inteligência competitiva (GIC), no sentido de valorizar todas as competências que possam ser parte do gérmen aglutinador onde corre o sucesso — avaliações de ordem sociológica, psicológica e mental; estabelecer um quadro de referências onde se imponham rankings de êxito; inserção de conteúdos numa nova metodologia de treino com a aplicação de matérias referentes às componentes atencionais, motivacionais, autoconfiança, coesão de grupo, formulação e reformulação de objetivos de conquista, comunicação, etc.

Como consequência dos pontos situados anteriormente e porque devem ser objeto de uma reflexão coletiva, todas as fórmulas que impliquem uma tomada de consciência deverão ser institucionalizadas, tendo como produto final uma forma de jogar autenticada e assumida como padrão dessa identidade vivida e operante, porque geradora de êxito.

Penso que com a construção de uma atitude mobilizadora destes compromissos, as razões que levam às tão deprimentes chicotadas psicológicas ficarão mais retidas no tempo.

Como referia Aristóteles: «Nós encorpamos ações que ao serem repetidas se transformam em hábitos. Se construímos hábitos rotineiros e simplistas, porque não focar o desejo da construção de hábitos de entusiasmo, de confiança, de felicidade, de raça e empenho na conquista do sucesso ?!»

Porque o GANHADOR é aquele que é capaz de omitir a palavra problema e enfatizar o termo desafio.

O GANHADOR não conhece os atalhos do facilitismo, transporta na alma as pegadas da experiência vivida e no rosto o certificado do sofrimento experimentado … vai à luta e …GANHA!