Chalana e o próximo ídolo

OPINIÃO16.08.202206:30

Poucas vezes veremos desaparecer um jogador tão simbólico de um tempo, tanto para os benfiquistas como para os portugueses, e simultaneamente tão intemporal

NÃO é preciso ter visto Fernando Chalana ao vivo e a cores, ou em direto num dos muitos ecrãs que temos por perto, para perceber a importância da sua carreira ao serviço do Benfica e da seleção nacional. Felizmente os últimos dias permitiram a muita gente mais nova, eu incluído, perceber melhor porquê. É triste que a celebração desta memória coletiva para uns, ou, para outros, a descoberta de um jogador verdadeiramente único, aconteça pelo pior dos motivos, mas as homenagens que se multiplicaram por estes dias foram especialmente tocantes, talvez porque vieram da infância simbólica de cada um dos eternos adeptos de Chalana.

Das homenagens dos amigos de sempre aos testemunhos dos miúdos hoje graúdos que Chalana ajudou a preparar para o futebol, passando por tantos mas tantos benfiquistas emocionados, é muito comovente constatar o impacto de Chalana no Benfica e no futebol português. E que alguém tão incrivelmente sedutor em campo, mas tão discreto fora deste, tenha conseguido perdurar muito para lá da carreira de futebolista, diz também muito do homem bom que nos foi dado a conhecer. Infelizmente, como tantos outros génios, também lhe reconhecemos as tormentas.

As homenagens foram demasiadas para poder aqui destacar todas, mas guardarei com especial consideração as palavras que o presidente do Sporting, Frederico Varandas, dirigiu a milhões de adeptos e ao Sport Lisboa e Benfica. Foi um momento de raríssima elevação que colocou a dimensão humana acima da rivalidade. Não resisto a perguntar: quantas vezes vimos alguém no futebol português comportar-se desta forma? Estes momentos são tão raros que já não parecem possíveis. Se, por um lado, isso é sintomático da crise de valores que o futebol português enfrenta, é bom perceber que vão surgindo comportamentos indicativos de outro caminho. É uma das muitas formas de honrar um vulto irrepetível que nos deixa: cuidar melhor do nosso futebol.
 

Fernando Chalana entra para a história como uma das maiores figuras da história do Benfica


Numa era feita de futebol de instantes repetidos até à exaustão por televisões e redes sociais, é impossível ficar indiferente aos melhores momentos de Chalana quando os vemos ou revemos hoje. Se o mundo analógico não lhe ficou indiferente há umas décadas, imagine-se o que teria sido daquela ginga neste tempo do digital que eleva tanto jogador banal a nova sensação do futebol. É estranho. Poucas vezes veremos desaparecer um jogador tão simbólico de um tempo, tanto para os benfiquistas como para os portugueses, e simultaneamente tão intemporal.

É verdade que o futebol mudou muito, mas em alguns aspectos continua exatamente igual. O génio de Chalana, como o de alguns raros predestinados, era diferente pela expectativa que suscitava assim que a bola chegava aos seus pés. Isso não muda. Queremos sempre ser surpreendidos e conquistados, mesmo que já pressintamos o desfecho, mesmo que Chalana já soubesse há muito para onde vai a bola e em que momento o adversário ficará para trás. Chalana foi e será sempre essa dimensão mais viciante do futebol. Quem não quer ver mais uma finta de corpo? Quem não quer ver alguém a conduzir a bola desta forma, capaz de aliar a sagacidade do futebol de rua à classe da aristocracia futebolística?

A imagem mais forte da triste tarde em que nos despedimos de Chalana, e uma que os benfiquistas irão seguramente guardar, é a dos colegas de equipa - Bastos Lopes, Carlos Manuel, Diamantino e Humberto Coelho - que regressaram ao relvado para um momento particularmente difícil, honrando o seu colega de equipa e amigo de sempre. Foram acompanhados por Toni, Shéu, Álvaro e outros ex-companheiros do Pequeno Genial. Tenho muito pudor em comentar uma cerimónia fúnebre, mas poucas vezes teremos visto tanto Benfica numa só imagem.

Que o clube e os benfiquistas continuem a saber celebrar com gratidão tudo o que estes ex-atletas e treinadores fizeram para tornar o Benfica a enormidade que é hoje; que seja possível tê-los sempre por perto, e deles fazer um exemplo que permita informar historicamente a chegada de todos os jovens que sonham um dia ser ídolos do Benfica, como tão bem e tantas vezes fez Chalana quando via o talento à sua frente num dos relvados do Seixal. Não me esquecerei da forma entusiástica, com um brilho de adepto nos olhos, como descreveu o miúdo Bernardo Silva. Mas ele não era um adepto como nós. Era antes adepto de pequenos génios, ou não fosse um deles. Viu tudo, mais uma vez, antes de quase todos.

E agora? Agora fica a saudade de um jogador extraordinário de outro tempo, irrepetível, mas que podia ser um ídolo hoje. E fica o vazio egoísta de um adepto como eu, que se entristece e por isso quer ver mais ídolos no seu Benfica. Honrar agora os ases que nos honraram o passado será, também, cumprir este desígnio. Saibamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para combater um futebol excessivamente mercantilizado que nos priva de heróis que deviam ser nossos, das fintas que levantam o estádio e fazem tudo valer a pena. É isso que jamais esqueceremos. Temos de continuar a escrever esta história, eternamente gratos por quem indicou o caminho e, de forma épica e estonteante, deixou os adversários pelo caminho.