Há uma semana, o mundo do futebol despediu-se de uma das suas figuras mais carismáticas. Sven-Goran Eriksson foi aclamado por jogadores, treinadores rivais e adeptos de todo o mundo. Entre muitos elogios, duas notas dominantes: a sua capacidade enquanto treinador, mas acima de tudo a elegância e a forma de estar do treinador sueco, que cultivou amizade e simpatia por onde quer que passasse. Também há uma semana, escrevi aqui que o Benfica se tornou maior por causa de Eriksson e que o clube teve esse mesmo efeito em Eriksson. Acredito que foi um dos casamentos mais felizes da história do clube.Pessoas como Eriksson não se limitam a passar por clubes ou a passear pelo futebol. No caso do sueco, a sua entrada na história do Benfica fez-se por via dos títulos conquistados, mas também pela forma como conviveu na arena futebolística portuguesa, e, não menos importante, pelo seu contributo para a construção de um Benfica ainda maior do que antes da sua chegada. Um Benfica que se faz respeitar dentro e fora de campo. Um Benfica que honra os seus pergaminhos enquanto instituição que fez história fora do relvado, que cumpriu uma função social muito para lá do futebol, e se notabilizou, ao longo de 120 anos de história, por emprestar a sua aura a um pequeno país que, com o Benfica, se tornou sempre maior. Num dos momentos mais angustiantes da história recente do clube, ajuda lembrar os ases que nos honraram o passado. Lembrar e honrar. Eriksson também foi, à sua maneira, um desses ases. E um clube que não tem memória dificilmente poderá aspirar a um futuro de glória. A avaliar por algumas análises que tenho observado nos últimos dias, muitas mais do que algumas vezes imaginei ser possível nos adeptos do Benfica, há quem hoje veja na história do clube um recurso lírico e entenda que o apego a um conjunto de princípios orientadores da ação e da instituição nos afasta da vitória, e que, como tal, é um obstáculo ao engrandecimento do Benfica. Estas não são pessoas que querem reescrever a história. São pessoas que, aparentemente, não querem saber da história para nada. Admito a boa intenção de quem assume essa postura. São Benfiquistas com direito à sua opinião, que querem ver um Benfica ganhador, tal como eu, mas que, nessa ânsia, aparentam só ver a vitória à frente. Percebo que a angústia seja enorme perante o estado catatónico a que chegámos, mas não percebo que se pondere o impensável. Após a saída de Roger Schmidt, ganha força uma corrente pragmatista segundo a qual o treinador mais preparado para o Sport Lisboa e Benfica é Sérgio Conceição. Não vou discutir os méritos do treinador, mas, nas palavras de quem discorda, é só porque o lirismo me impede. Assumo. Se é lirismo olhar para Sérgio Conceição e ver um treinador aliado a uma cultura de dirigismo que representa o pior do futebol, aqui estou disponível para aceitar o rótulo. Se é lirismo olhar para Sérgio Conceição e ver um treinador expulso 24 vezes ao longo da sua carreira, com alguns dos comportamentos mais lamentáveis que já vi numa pessoa com o seu cargo, chamem-me lírico à vontade. Se é lirismo olhar para Sérgio Conceição, lembrar a noite em que se recusou a acatar a ordem de expulsão de um árbitro e sentir pavor de ver um comportamento semelhante ao serviço do Benfica, pois bem, já perceberam a ideia. Se é lirismo recordar que Sérgio Conceição ignorou que um adjunto seu tentou atingir um adepto de um rival com uma medalha de vencido, parece que sou eu o lírico. Se é lirismo olhar para Sérgio Conceição e ver alguém que desrespeitou demasiadas vezes o Benfica, façam-me um favor e botem lirismo nisso. Já agora, a quem gosta desta ideia, para mim quase repulsiva, fica a sugestão: porque é que não mandamos os líricos às malvas e trazemos o Luís Gonçalves também? Assim temos alguém para encostar a cabeça ao quarto árbitro quando as coisas não correrem de feição. Pelo caminho aproveitamos o embalo e contratamos um diretor de comunicação que faça do trabalho subterrâneo a sua vida e se dedique a tornar o nosso futebol mais pantanoso do que é. À Benfica, estão a ver? Já que estamos inspirados, podia ser interessante juntarmos a esta pandilha uma claque mais musculada que faça umas visitas aos árbitros no centro de estágios, só para ter a certeza de que as coisas correm bem. Afinal de contas, só ganhar interessa. Deixemo-nos de lirismos. Só a vitória importa! O Benfica que se lixe! Reparem que ignorei olimpicamente os méritos de Sérgio Conceição enquanto treinador, e faço-o de forma deliberada. Não são para aqui chamados. Há coisas que estão acima disso. É um tipo de clubismo em que me revejo. E não sou o único. Há uma semana, Eriksson foi recordado num comunicado oficial do clube como um exemplo de «elegância, educação e urbanidade”» É importante que estas qualidades tenham sido salientadas, e quero acreditar que isso não aconteceu apenas para servir o propósito circunstancial de um elogio fúnebre. Foi mesmo porque a elegância, a educação e a urbanidade se tornaram traços do Benfica à passagem de pessoas como Eriksson e saíram fortalecidos enquanto atributos que definem o clube. Quem passa por aqui deve aspirar a tornar o clube melhor à sua passagem e isso faz-se tanto com os títulos conquistados quanto através da forma como lá se chega, ou da memória que se deixa. Se é verdade que a identidade do Benfica foi construída em função da sua capacidade para vencer mais vezes do que os outros, isso nunca equivale a dizer que o clube o fez a qualquer custo. O Benfica nunca foi apenas isto. Este clube do povo, de origens humildes, fez-se sempre maior quando olhou a meios para obter o que tantos outros desejavam: os títulos, a admiração, a inveja dos demais, e um lugar na sociedade portuguesa que transcende o desporto. Foi assim que se tornou um símbolo de orgulho cultural. Ser do Benfica e isso nos envaidecer não é algo que se vê apenas no resultado final de um jogo. Por isso, perdoem-me o lirismo, mas considerar a contratação de alguém como Sérgio Conceição é ser o contrário de um clube que nos envaidece. É toda uma ideia de Benfica que eu me recuso a aceitar. É, também, um clube acometido de um desespero palpável. Os contextos adversos devem fazer-nos equacionar quais os melhores caminhos para regressar às vitórias, mas seria prudente não nos desviarmos de um respeito mínimo pela instituição que apoiamos e corporizamos. Há caminhos que poderão eventualmente aproximar-nos da vitória, mas produzirão um importante colateral: uma certa perda de respeito por nós mesmos. Digamos o que dissermos, não me parece que sejam os adeptos a decidir, e portanto há que colocar o tema em perspetiva. Posso ter muitas críticas a fazer ao presidente do Benfica, mas tenho a convicção de que jamais contrataria alguém como Sérgio Conceição. Não acredito que fizesse isso ao clube. Independentemente das críticas que lhe tenho dirigido, é bom que um mínimo de bom senso exista em quem lidera um clube como o Benfica. Rui Costa parece-me completamente desorientado, mas não ao ponto de contrariar os líricos. E proteger uma instituição das piores decisões possíveis, como esta que agora se discute, não é um pormenor. É também aquilo que mantém a instituição viva e a torna mais respeitável. Por isso, eu, lírico, me confesso. É verdadeiramente assustador que tantos adeptos vejam a possibilidade com bons olhos. Contratar Sérgio Conceição seria uma punhalada na identidade do Benfica. Não consigo imaginar um treinador menos adequado para o clube. Só mesmo o desespero e uma crise existencial crescente podem explicar que essa hipótese seja considerada. Não devemos colocar aspas em palavras como valores, ética ou princípios. Devemos escrevê-las na pedra. Honrar os ases que nos honraram o passado, e rejeitar quem jamais nos poderá representar condignamente.