Esqueçam, não é esse Mourinho
Mourinho em Portimão, no GP de MotoGP (Foto: IMAGO / ZUMA Wire)

Esqueçam, não é esse Mourinho

OPINIÃO11.04.202410:15

‘Special One’ sabe onde estão as câmeras e que quando o virem vão fazer perguntas  

Há 20 anos, mais coisa menos coisa, andava eu pelo país a cobrir o Euro-2004, e um colega do Guardian, que já me encontrara duas ou três vezes, colocou finalmente a questão que o atormentava: «Que dizes do Mourinho? Terá sucesso no Chelsea?» Não me lembro das palavras exatas, mas terei dito algo assim: «Jon, my friend, prepara-te para algo que nunca viste! Vai abanar o vosso mundo até às fundações!». Ele ficou tão perplexo com a minha confiança que se demorou na minha expressão, procurando algum tique nervoso, algo que certificasse um precoce sinal de loucura, até troçar, entredentes: «Humm… At Chelsea

Pouco depois, em Coimbra, fiquei cara a cara com Arsène Wenger, que acabara de levar os Invencíveis à coroação em Inglaterra. A multidão que entrava para o Suíça-França, que o francês comentaria para a televisão do seu país, empurrara-nos para um dos lados do átrio. De uns degraus abaixo, apresentei-me e arrisquei: «Monsieur, como comenta Mourinho no Chelsea?» Não me recordo bem, deve ter dito algo de circunstância. No entanto, nunca me esqueci da expressão. Revia-a vezes depois, algumas quando lutava com o zipper dos impermeáveis junto à lateral. Puro embaraço.

Mourinho era Midas e qualquer equipa tocada pelo novo rei se arriscava a ganhar. Fosse um Chelsea que não vencia há 50 anos, um Inter que não tinha o domínio continental desde Helenio Herrera ou um Real a atravessar uma era dominada pela melhor equipa da história. Era especial no treino, e a nível estratégico, tático e psicológico. Os seus jogadores eram os mais bem preparados – com a bola sempre presente, o que os motivava ainda mais, o trabalho incidia no aspeto físico e técnico ao mesmo tempo -, e ele fazia rapidamente com que acreditassem que não havia melhores no mundo. Depois, pairava na sala de impresa e usava-a a seu bel-prazer.

Já o disse antes, esse Mourinho é outro, não aquele que nos bate agora à porta. A periodização tática já não faz tanto a diferença porque o treino evoluiu, a nível estratégico há quem seja tão ou mais minucioso e os jogadores não são tão facilmente convencidos, porque o próprio técnico deles se queixa quando antes não o fazia. O Special One deixou-se dominar por fantasmas e também nas conferências parece ter perdido o jeito de falar para dentro. Os resultados refletem-no, mesmo que tempos a tempos disfarce com uma Taça, a Liga Europa ou Conferência. A isso, juntou-se uma ideia pragmática e cínica de jogar.

Mou sabe, como poucos, jogar o jogo fora das quatro linhas. Sabe onde estão as câmeras e que, ao aparecer, surgirão perguntas e notícias. Avalia momentos e antecipa cenários, como os de Sporting, Benfica e FC Porto, que podem mudar, por razões diferentes - e se nos dragões ganhou tudo, já na Luz deixou trabalho incompleto e um dia chegou a estar a caminho de Alvalade. Sabe depois fazer-se desentendido, lê-se que quer continuar nas grandes ligas, mesmo que olhem menos para si. É por isso que, também por cá, os portugueses têm de perceber para qual dos Mourinhos estão a olhar.

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