A finitude e a importância do legado
'Cartas na mesa': Os desaparecimentos de Artur Jorge, Rui Rodrigues, Alexandre Baptista e Pietra devem despertar-nos para o que fica no fim dos dias
Há coisas transitoriamente importantes, outras que são estruturalmente importantes, e da síntese destas duas circunstâncias resulta o legado que cada um deixa. No que respeita a quem, num determinado período, mais longo ou mais curto, vive iluminado pelos holofotes da fama, tem o nome na comunicação social, e é reconhecido nas ruas, por vezes torna-se difícil gerir o day after, e fá-lo-á tanto melhor quanto tiver consciência da inconsistência dos tempos de maior visibilidade.
Porque a lei da vida ordena que um dia tudo acabe. Aos 66 anos, e com uma carreira profissional no futebol de 15 épocas, sou capaz de fazer uma equipa de antigos companheiros, que partilharam comigo balneário pelo menos durante uma temporada, que já partiram, a maioria precocemente (entre parêntesis, o clube onde nos cruzámos e a idade que tinham quando faleceram): Bento, (Benfica, 58); Pietra (Benfica, 70), Carlos Alhinho (Portimonense, 59), Frederico (Benfica, 61) e Tião (Portimonense, 64); Arnaldo (Montijo, 54), Eurico Caires (Belenenses, 37) e Rui Filipe (Espinho, 26); Manoel (Portimonense, 62), Artur Jorge (Belenenses, 78) e Chalana (Benfica, 63), a quem podia acrescentar Neno (Benfica), Fernando Martins (Portimonense), Nelsinho (Portimonense), Hertz (Belenenses), Evaristo (Montijo) e Gilberto (Montijo).
De cada um guardo memórias associadas ao futebol, mas não será isso que essencialmente os define. Porque - e se calhar isto pode servir de lição a quem hoje pensa que tem o mundo na mão sem cuidar do amanhã - há valores muito mais altos que se levantam. E é aqui que entra Minervino Pietra, que velaremos esta noite na igreja de Alcabideche, que será recordado do grande público pelo extraordinário futebolista que foi, e por quem com ele privou por qualidades que o acompanharam até ao último suspiro: personalidade forte, frontalidade, amigo do seu amigo, profunda humanidade por baixo de uma capa de miúdo reguila da Ajuda, e um sentido de lealdade absolutamente blindado a qualquer tentação. Escrevi, na primeira pessoa, na edição de sábado deste jornal, um artigo em que contei algumas histórias reveladoras da personalidade de Pietra. E vou aqui partilhar o título que tinha, e que apesar de traduzir com fidelidade quem ele foi, não pôde entrar, por uma questão de espaço. Dizia assim: «Morreu Pietra, um gajo do caraças.» E é assim que o recordarei para sempre. Um gajo do caraças!