A discussão

OPINIÃO11.11.202205:30

Nenhuma organização melhora sem debate e nenhuma organização pode evoluir se tiver permanente medo de mudar

ESTA nossa vida de jornalistas tem coincidências, apesar de raras, muito engraçadas. Há uns dias, daríamos, provavelmente, a vida, como jornalistas, claro, para conhecer e poder revelar a secreta lista dos 26 (mesmo que, para quase todos, muito prováveis) jogadores convocados pelo selecionador Fernando Santos, para defender a equipa das quinas no Campeonato do Mundo que o pequeno emirado árabe do Catar, apesar de toda a controvérsia, contestação e até alguma indignação, vai receber a partir, já, do próximo dia 20, um domingo, quando for dado o pontapé de saída no jogo Catar-Equador.
Percebemos, entretanto, ontem, aqui, na redação de A BOLA, que não teríamos, afinal, precisado de dar a vida para conhecer as escolhas do selecionador, quando as tínhamos, certinhas, nome a nome, dentro da nossa própria casa.
Vejam bem a coincidência: por iniciativa do meu camarada Rogério Azevedo (que estará, no Catar, na cobertura do Mundial como enviado-especial de A BOLA), pediu-se a 30 dos jornalistas desta redação que escolhessem os 26 jogadores que convocariam caso fossem o selecionador. E pela percentagem dos votados, chegámos aos jogadores nomeados como ‘os nossos 26’.
Pois a verdade é que ‘os nossos 26’ foram, sem tirar nem pôr, os 26 eleitos, e ontem anunciados, pelo selecionador Fernando Santos. Em cheio!
Com a tremenda particularidade - acredite, naturalmente, nisso, caro leitor - de ‘os nossos 26’ resultarem, por fim, das percentagens dos mais votados pelos 30 jornalistas de A BOLA e não de qualquer informação ‘top secret’ feita chegar à redação do jornal, num qualquer discreto envelope, entregue por qualquer mão anónima, em nome de uma qualquer infidelidade. Os 26 eleitos por Fernando Santos são exatamente os mesmos 26 eleitos por A BOLA como quem acerta no Euromilhões. Uma feliz coincidência a que achámos todos, na tarde de ontem, muita graça. E só graça.  
Já agora, bem podia o selecionador Fernando Santos ter reconhecido a coincidência de A BOLA acertar nos 26 futebolistas que Portugal levará ao Catar. Não lhe custava nada. Nem acredito que não soubesse, porque A BOLA revelou-os nas duas últimas edições, muitas horas antes, portanto, de Fernando Santos se ter dirigido, ontem, ao ‘país futebolístico’. O que se ouviu foi o selecionador confessar ter visto algumas iniciativas, aqui e ali, sobre a escolha dos 26, sem precisar que houve, pelo menos, uma delas, que fez… bingo! Vale só o que vale, mas não teria ficado mal ao selecionador ter, até, brincado com o tema. O futebol também pode, e deve, ser diversão.
Devo, ainda a propósito do encontro de ontem, manifestar, ainda, a minha perplexidade por ouvir o selecionador lamentar o exclusivo interesse dos jornalistas nos jogadores convocados ou não convocados, quando a conferência de imprensa foi, precisamente, marcada para a divulgação da convocatória e, portanto, para falar dos jogadores que o selecionador leva, e eventualmente dos que não leva, ao Mundial.
Queria o selecionador, pelos vistos, que os jornalistas o questionassem já sobre o Mundial, supostamente sobre jogos, adversários, eventuais estratégias, e não insistissem nos convocados. Confesso que não compreendo. Numa conferência sobre os convocados não se deve, sobretudo, falar dos convocados?!

DIZ-ME a minha experiência de vida que nós, portugueses, por defeito cultural ou mera característica social, somos, como comunidade, muito avessos às mudanças, gostamos pouco de transformações, adoramos a democracia desde que ela não interfira com o nosso poder, defendemos o debate e a discussão desde que não nos questione ou escrutine ou fiscalize. Revoluções? Nem pensar! Fizemos uma, pacífica, cheia de cravos e sorrisos, e chega. Não se fala mais nisso.
No futebol, ideal, para muitos de nós, com esta aversão às mudanças, é estar ao lado do poder. Nunca pô-lo em causa. É um bocadinho como na política, e talvez por isso, por se prezar tanto (em excesso?) a alegada estabilidade, é que PS e PSD têm alternado no Poder desde que a democracia, em Portugal, é democracia.
Nos clubes desportivos é a mesma coisa e é um ‘ai jesus’ se alguém se atreve, dentro do clube, a levantar questões. Ou a querer debater. Ou a propor mudanças. É logo apontado como desestabilizador. Todos sabemos que é assim.
Se a equipa de futebol está a perder, acusam-no de se aproveitar do mau momento. Se a equipa está a ganhar, acusam-no de querer deixar mal o que até está tão bem. Preso por ter cão e preso por não ter. Mudar? Mas mudar o quê? E mudar para quê? Um absurdo!
Qualquer organização (ou comunidade) só evolui com massa crítica, debate, discussão, troca de ideias.

NO Benfica, alguns dirigentes parecem ter um entendimento diferente sobre o modelo de gestão que deve ser aplicado na SAD. Discuti-lo deve ser visto não apenas como algo absolutamente normal e até saudável. Por que não deve debater-se uma nova ideia, um novo processo, uma nova intenção? Devemos olhar os que propõem e desejam mudanças, discutindo-as, como se fossem gente impiedosamente vaidosa ou caprichosamente egoísta? O conformismo, a imobilidade, a ausência de debate e de ideias transformadoras, isso sim, faz mal às organizações, às equipas, às instituições, às sociedades. A estabilidade só é útil quando defende e serve verdadeiramente os interesses da maioria, mas não deve aceitar-se a estabilidade em nome de um sempre inaceitável ‘deixa andar’ para não alterar as lógicas de poder.
Numa qualquer comunidade ou organização, os maiores perigos vêm exatamente da falta de ação. De não se fazer nada. De não se escrutinar, não estar alerta, não fiscalizar, não pugnar por mais transparência, não se defender a ética e a integridade.
Um clube como o Benfica, ou como qualquer outro, não deve recear, nunca, a discussão e o debate, mais ainda quando a história nos fala de uma instituição que sempre recusou o perigo das unanimidades e nunca deixou de promover os ideais e os valores de uma identidade profundamente democrática, com base na própria raiz mais popular que lhe deu origem.
O Benfica, em resumo, nunca poderá ter medo de mudar se mudar lhe conferir um estado mais coeso, se as reformas eventualmente lhe proporcionarem mais proximidade com os sócios, mais clareza nos processos, melhor e mais saudável organização.
Essa peregrina ideia de que a intenção de mudar significa estar necessariamente contra alguém, só mesmo na cabeça de gente que pensa mais pequeno neste tão pequeno país. Seja no Benfica ou noutra qualquer instituição. Ter medo de mudar é ter medo de descobrir, de arriscar, de desafiar, de crescer. É verdade que não poucas vezes se muda para que tudo acabe, afinal, por ficar na mesma. Mas ficará seguramente tudo na mesma se nada fizermos para mudar o que nos parece estar menos bem.
É um risco? Claro que é sempre um risco. Já diz a sabedoria popular que ‘atrás de mim virá quem, de mim, bom fará’, no sentido em que, com o passar do tempo, pode acabar por se perceber o bem que foi feito e dar-se o valor que não se conseguiu, não se quis ou não se pôde reconhecer antes.
Não será, porém, possível que a discussão e o debate, neste caso, no interior do Benfica, ajude a criar uma nova ideia, um novo modelo, um novo processo e uma nova forma de olhar para o todo e não apenas para algumas das partes?

ESTÁ, evidentemente, o Benfica, como maior instituição desportiva do País e, muito em particular, como poderoso emblema do futebol, a precisar do sucesso que não encontrou nos últimos três anos e deve ser, naturalmente, compreensível que se foque, nesta altura, muito mais no trabalho na área desportiva do que na organização e na estrutura de uma SAD, realmente abalada, sobretudo nos últimos três anos, por um conjunto de inesperado, surpreendentes e controversos acontecimentos.
Mas nem a legítima procura de sucesso desportivo deve impedir um clube com a grandeza, o impacto e a base de apoio do Benfica de se olhar ao espelho e tentar, com regularidade, perceber o que pode, eventualmente, estar a fazer errado. Se não for capaz de discutir, dificilmente será capaz de se tornar melhor. Discutir não é deixar que todos mandem. Discutir é permitir que todos contribuam para decidir melhor quem deve, realmente, tomar a decisão. Apenas isso.