A dificuldade de comentar lances de futebol
'O poder da palavra' é o espaço de opinião semanal de Duarte Gomes, antigo árbitro
Quanto mais análise técnica faço, mais tenho a certeza que nem com as melhores imagens do mundo seria capaz de acertar sempre, de dizer tudo certo, de nunca falhar na opinião.
Aliás, no futebol, acertar é uma expressão relativa, porque tudo o que lhe diz respeito, dentro e fora de campo, raramente é consensual. Isso vale para o penálti bem ou mal assinalado, para a expulsão que foi e não era ou para o fora de jogo que pareceu ser mas não seria. E vale para o treinador que era excelente e não presta, para o artilheiro que marcava golos e não marca, para o presidente que era o maior e nunca mais vai embora.
Quanto ao jogo em si, é tremendamente difícil de analisar dada a sua velocidade e dinâmica, sobretudo em alta competição. Não tenham dúvidas, é muito complicado medir a intensidade de alguns contactos, avaliar determinados comportamentos, ajuizar lances que envolvem braços ou mãos mais discretas, etc, etc... Há jogadas que, por muito que se vejam e revejam ao detalhe, nunca ficam claras. Claro que, nesses casos, prevalece a interpretação que o analista faz. Prevalece o seu conhecimento técnico, a experiência que granjeou enquanto esteva lá dentro, o feeling, tudo o que puder ajudá-lo a opinar com equidistância. Mas o veredito será sempre aquele que entende ser o mais justo e adequado.
É por isso que, tantas e tantas vezes (na maioria dos casos), o que diz o comentador X é diferente do que diz o Y. Não se trata de um estar certo e outro errado. Estão é ambos a dizer a sua verdade. A verdade que resulta de uma interpretação honesta.
O que não e aceitável — e já o disse aqui noutras ocasiões — é que existam leituras distintas em situação factualmente claras. Aquelas em que manifestamente só pode haver uma única decisão, uma única opinião: o jogador que estica o braço sobre a sua linha de baliza, evitando um golo certo, tem que ver o cartão vermelho direto; a equipa do defesa que derruba um adversário na sua área, tem que ser punida com pontapé de penálti; o guarda-redes nunca pode agarrar a bola com as mãos fora da sua área de penálti; um golo não pode ser marcado na própria baliza na sequência de um pontapé de canto, enfim, há um sem número de situações de jogo que só têm uma única resposta. Se dois comentadores as analisarem de forma distinta, um deles foi incompetente nessa avaliação.
E, sejamos sinceros, já aconteceu e mais do que uma vez. É nesses momentos que infelizmente damos razão ao Zé Povinho quando diz «nem eles se entendem». É aí que somos, sem querer, lenha para a enorme fogueira que todos os dias queima árbitros de futebol.
Ser comentador de arbitragem, que não é uma profissão mas uma ocupação para levar a sério, pressupõe compromisso, consistência e qualificação. Porquê? Porque sabemos que a análise pode influenciar opiniões de adeptos e comentadores, até de jogadores e treinadores. Sabemos que pode ilibar árbitros em lances-limite, mas também pendurá-los na forca, para gaúdio de tantos e tantos. Temos que ter noção da responsabilidade do papel que desempenhamos. Isso obriga-nos a sermos exigentes no rigor da análise técnica em si, mas também no cuidado em relação à linguagem e tom utilizados. Temos o dever de ser muito claros, pedagógicos, esclarecedores, transparentes. Não podemos nem devemos formular juízes de valor, achincalhar instituições ou ofender pessoas, sejam eles/elas quem forem.
Sabendo do mediatismo que a função tem e conhecendo bem a forma tribal como tantas vezes é percecionada, é fundamental que utilizemos este espaço para comunicar com respeito e educação, sem ironias nem sarcasmos e, mais importante, sem ressabiamentos aparentes de passados mal resolvidos.
Infelizmente nem sempre é assim.