A arbitragem portuguesa
Há decisões que não podem acontecer com VAR nas nossas provas
COSTUMO pensar que não há ninguém que sinta mais a arbitragem do que eu. Pode haver quem a sinta tanto como eu (e haverá muita gente), mas mais não.
O que na verdade pretendo dizer é que esta é uma das minhas grandes paixões. Gosto de tudo o que lhe diz respeito, da preparação às viagens, do jogo aos treinos. Mas essa proximidade não me tolda a lucidez nem me impede de ver o que é óbvio. Aliás, acho que é precisamente isso que me mantém apurado o sentido crítico. Quem gosta de verdade, quer sempre mais, de si quer e dos outros.
O conformismo e o corporativismo são os piores inimigos de qualquer classe. Aqueles que insistem em sentir uma crítica técnica como um ataque pessoal ou que acham que já não têm nada a aprender, jamais sairão de onde estão.
Sou e serei sempre defensor da honestidade dos árbitros - até prova em contrário, de todos os árbitros - mas sei que enquanto atores importantes do jogo, alguns têm margem para melhorar. Sei também que outros (poucos) não estão habilitados para andar na alta roda, por lhes faltar o essencial: maturidade competitiva, sensibilidade para a função, inteligência emocional e firmeza de personalidade. Arbitrar um jogo é mais, muito mais do que simplesmente apitá-lo. Quem não percebe a diferença está na profissão errada.
Esta geração, bem preparada física e tecnicamente, intelectualmente evoluída e com boas condições de trabalho, tem a vida facilitada porque herdou da anterior tudo o que hoje usufrui, sem ter feito qualquer esforço. Sem ter negociado ou exigido o que quer que fosse. A saber: condições financeiras muito privilegiadas, centros de treino variados, apoio médico competente, estágios pré-jogo de qualidade, motorista/carro para transporte de e para jogos, (semi) profissionalização da atividade, patrocínio nas camisolas, equipamentos e acessórios de treino/jogo gratuitos, acompanhamento especializado, seguros médicos, enfim, um sem número de recursos que lhes dão tranquilidade e paz de espírito. Recursos que lhes permitem focar apenas no essencial.
Hoje em dia os árbitros não se desgastam com viagens a meio da semana para reunir com colegas e pensar na arbitragem como um todo. E não se desgastam porque simplesmente não se reúnem. Não se encontram como uma equipa só. Não têm espírito de classe. O seu objetivo é um e apenas um: arbitrar jogos.
Então, se a tendência atual é essa, o mínimo que se pode exigir é que o façam com qualidade.
A introdução de tecnologia aumentou muito a exigência sobre a classe e isso era expetável. O erro humano - que continua a merecer compreensão para quem, em campo, tem que decidir em frações de segundo num contexto por vezes dificílimo - está no entanto esbatido pela presença de uma ferramenta que, se bem utilizada, repõe maior justiça e mais verdade ao jogo.
Descontando as inúmeras situações cinzentas, que não cabem no protocolo e que manterão sempre acesas as chamas da discussão em praça pública, tem havido um conjunto de erros factuais que são inadmissíveis a este nível. Seja por falta de concentração momentânea, inexperiência ou pura incompetência, a verdade é que há decisões que não podem acontecer com VAR nas nossas provas.
Era bom que esta geração, que não se preocupa com mais nada a não ser arbitrar, perceba o peso da responsabilidade que carrega e a importância do seu papel no jogo. É também importante que nunca se esqueçam que são apenas um meio, não um fim. Pés no chão, mais humildade e foco no essencial.