Consciencializemo-nos! (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 70)

Espaço Universidade Consciencializemo-nos! (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 70)

ESPAÇO UNIVERSIDADE01.03.202318:27

Quando Lev Tolstói iniciou o seu «Anna Karénina» – “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira” – de certeza que não estaria a pensar no desporto, mesmo que de uma forma metafórica se tratasse. Isto até porque em 1877 este se encontrava nos seus primórdios…

O desporto actual já não é o «deportatre» latino, porque a sua prática já nada tem de distracção ou de divertimento, e nele estão presentes todas as situações, desde as mais exemplares às mais ignóbeis, desde as portadoras de valores às detentoras das maiores perversidades. Nele, neste momento, a vitória e a acumulação de riqueza têm um mais do que importante papel – já não é tanto o «interessa participar»...  E sim, parafraseando Tolstói, todos os que se servem do desporto são parecidos; os que o servem são ignorados, relegados para segundo ou terceiro plano, mas felizes à sua maneira e consigo próprios.

Actualmente o desporto pós-moderno tem de ser encarado como uma actividade que possui valores intrínsecos ao ser humano mas também tem valores (preço) económicos. Tem de ser visto como uma actividade que não gera nem bens nem obras, e, mesmo criando postos de trabalho em inúmeras áreas, não cria riqueza, embora a movimente em determinados sentidos. Actualmente o desporto assenta em dois intervenientes: o praticante (desportista, competidor) e o consumidor (espectador). E não é só consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico para a época da imagem e, na sociedade actual, como nos diz Manuel Sérgio (1), a educação desportiva chega às pessoas pelos ‘media’ e pela ‘internet’, destituída de preocupações éticas, bem mais do que pela escola e pela família. Não há desporto sem competidor e sem espectáculo (o que implica a existência do espectador).

O desporto pós-moderno é essencialmente alta competição e profissionalismo, é fundamentalmente espectáculo, é movido pelos ‘media’ e pela publicidade, exige sensacionalismo e impõe heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e nele tudo é quantificado (em termos de comprimentos, pesos, tempos, pontos, golos, recordes, bolas de ouro, cartões vermelhos e amarelos, número de jogos jogados, ‘performances’, etc.). Por último, e talvez mais importante, com mais peso, mas menos consciencializado, o desporto pós-moderno é gerido pela economia e pela política.

Robert Redeker (2) parte da hipótese de que “o desportista é um mutante submetido ao imperativo da comercialização” para chegar à conclusão que o desporto é um eugenismo despolitizado.

E mostra-nos (3), fazendo cair o mito de que o desporto é um reflexo da sociedade, como o desporto estrutura essa mesma sociedade, a modela, como a força para se parecer com ele. “O desporto é uma ideologia” afirma ainda, apresentado o desporto-espectáculo como um transfundir, dia após dia, do culto da ‘performance’, do amor pela lei do mais forte, do fanatismo da avaliação e da legitimação da fraude (não visto, não acontecido).

Quando nos dizem que “não devemos esquecer ou ter dúvidas dos valores que a prática desportiva generalizada, mas sobretudo a competitiva, incute no desenvolvimento de seres humanos como motivação para enfrentarem quaisquer desafios que a vida lhes apresente e da relevância que tem em termos de saúde em geral, com os hábitos saudáveis que garante a todos os seus praticantes, e saúde mental, devendo ser o principal aliado na sua preservação” (Carlos Paula Cardoso, Presidente da Confederação do Desporto de Portugal, em «A Bola», 28.12.2022), nós duvidamos. Duvidamos porque os comportamentos de violência, a corrupção, a fraude, o treino intensivo precoce, a morbilidade, a dopagem, o suicídio, a morte súbita, os abusos sexuais e o treino intensivo precoce estão cada vez mais presentes (e em maior número) no seio do desporto.

E duvidar é não nos enganarmos a nós próprios.

Deixemos de encarar o desporto como uma indústria quando na realidade é um comércio com muito negócio à mistura.

Consciencializemo-nos pois que no desporto a vítima é o desportista e o grande responsável é o consumidor – ou seja, nós! Os políticos (governos, deputados e partidos), as instituições (federações, associações e clubes) e os dirigentes desportivos são só efeitos colaterais…

(1) Sérgio, M., 2008, “Textos insólitos”. Lisboa: Piaget.

(2) Redeker, R., 2008, “Le sport est-il inhumain?”. Paris: Panama.

(3) Redeker, R., 2012. “L’emprise sportive”. Paris: François Bourin.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.