A tirania dos regulamentos (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 51)

Espaço Universidade A tirania dos regulamentos (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 51)

ESPAÇO UNIVERSIDADE22.11.202112:39

A competição, ou antes, a vitória na competição, mede-se por critérios objectivos e/ou por critérios subjectivos. É uma avaliação. Para designar vencedores e vencidos é imprescindível essa medição. Em relação aos primeiros temos as medidas de comprimento, de peso, de tempo, os golos ou os pontos marcados… No que se refere aos segundos temos a atribuição de notas ou uma pontuação… Tudo isto está plasmado em regulamentos, que muitas vezes não são éticos mas são legais. E quando a lei está em conflito com a ética, é raro prevalecer a ética, até porque se antes os homens necessitavam de ‘panus et circenses’, teremos de dizer que actualmente a necessidade se baseia no ‘panus, argentum et circenses’...

Se concordamos em atribuir uma maior fiabilidade aos critérios objectivos porque a isso estamos habituados – erros de percepção, enviesamento e ruído são frequentes nos juízos subjectivos – teremos de desmistificar no entanto essa atribuição porque nem sempre é verdadeira.

Vejamos dois casos concretos!

Em 2007 Naide Gomes participou nos Mundiais de atletismo de Osaca. Na sua qualificação fez um salto de 6,96 metros, apurando-se de imediato para a final, pois a marca a ser transposta era de 6,85 metros. Na final, só a vencedora, a russa Tatyana Lebedeva, ultrapassou os 7 metros. Nenhuma das outras medalhadas (2º e 3º lugares) superou aquela marca da atleta portuguesa – a russa Lyudmila Kolchanova saltou 6,92 metros e a sua compatriota, Tatyana Kotova, fez um salto de 6,90 metros. Tendo feito 6,87 metros na final, Naide Gomes ficou-se pelo quarto lugar… mas nas eliminatórias, repetimos, tinha feito 6,96 metros. Tudo isto aconteceu na mesma prova, embora em etapas diferentes: eliminatórias e final. Um salto superior num antes e um inferior num depois… mas decisivo este último.

Nos Mundiais de ginástica artística ‘all around’ de 2021, em Kitakyushu, Filipa Martins terminou na 7ª posição com 52,199 pontos, muito perto da classificada em 5º lugar com 52,832 pontos. No entanto, esta ginasta na qualificação para a final obteve um 6º lugar com uma pontuação superior à da final: 53.032 pontos. Tudo isto aconteceu também na mesma prova, embora em etapas diferentes: eliminatórias e final. Uma pontuação superior num antes e uma inferior num depois… mas decisiva esta última.

Verificamos assim que os regulamentos desportivos, nas provas com qualificações e final, permitem que um competidor que tem um melhor tempo, uma melhor marca ou uma melhor pontuação numa eliminatória (qualificação para a final), possa ser derrotado na final por outro competidor com um tempo ou uma marca inferior nessa mesma prova.

Detenhamo-nos agora um pouco numa mera hipótese académica…

No ténis se um jogador vencer o primeiro ‘set’ por 7-5, após empate (5-5), e se perder o segundo por 1-6 terá de disputar um terceiro ‘set’. Se neste último o resultado lhe for favorável por 6-4, ele será o vencedor, pois vence dois ‘sets’ e perde um. Mas se contabilizarmos o número de jogos, verificamos que esse jogador venceu 14 enquanto o derrotado venceu 15 jogos… Por força dos regulamentos, o jogador que ganhou o maior número de jogos acaba por ser o derrotado…

Passemos a um outro campo paralelo, o dos contratos. Porque no desporto tudo se compra e tudo se vende, tudo é regulado pela oferta e pela procura… no desporto tudo se negoceia (grande é o “comércio”, apesar de haver muitos – e alguns com responsabilidades educativas, organizacionais, políticas, institucionais – que nos querem instrumentalizar fazendo-nos crer que o desporto é uma “indústria”)… no desporto o “deus dinheiro” é dono e senhor da mercadoria!

Em Dezembro de 2016, no combate de Mixed Martial Arts entre Ronda Rousey e Amanda Nunes, a primeira foi derrotada ao fim de 48 segundos. Nesse combate, a derrota rendeu a Ronda Rousey a quantia de mais de dois milhões e quinhentos mil euros. A vitória rendeu a Amanda Nunes cerca de dois milhões de euros. Um provável título para este evento: quando a derrotada ganha mais do que a vencedora! Questões de negócio… mas que marcam a diferença entre uma vitória e uma derrota.

Numa época de mercantilização do desporto, encontramo-nos na presença de um sistema ilusório embora não um sistema de ideias falsas. Os actuais ideais desportivos tornam-se assim social e politicamente eficazes, todavia os mesmos encontram-se divorciados das suas condições sociais da emergência e da natureza da competição. Parafraseando Ortega y Gasset, poderemos dizer que “o maior crime está não no erro, mas na convicção das pessoas de que o errado está certo”.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.