Viagem interior ao mundo do futebol (artigo de José Augusto Santos, 26)

Espaço Universidade Viagem interior ao mundo do futebol (artigo de José Augusto Santos, 26)

ESPAÇO UNIVERSIDADE11.11.202117:40

Quando me foi solicitado pelos meus colegas editores para escrever cinco páginas para integrar um livro sobre futebol no item Futebol e Ciência, comecei logo a equacionar a dimensão científica da abordagem – fisiológica, metodológica, sociológica, psicológica, biomecânica, traumatológica, etc.
 

O reduzido espaço disponível não permite grandes veleidades pelo que optei por uma abordagem científica “humanológica”, ou seja, uma tentativa de tentar desvendar as conexões múltiplas que o futebol provocou em mim enquanto ser humano medianamente desperto e consciente duma realidade que viveu e vive ainda.
 

Quando no início dos anos oitenta fui convidado par integrar o staff técnico de uma equipa de futebol profissional militando no mais elevado patamar competitivo do futebol português, fui descobrir um mundo novo com regras e rituais próprios que definem um espaço social e existencial peculiar e sem paralelo noutras modalidades desportivas.
 

Ao contrário do que gente pouco avisada poderá pensar, esse mundo quase esotérico não é o mar de rosas que muitos entrevêem nas imagens e relatos dos mass media. As regras mais importantes que gerem esse mundo de contrastes não são escritas, estão implícitas nas relações humanas e definem uma esfera noológica ímpar que regula de forma autoritária o funcionamento do futebol.
 

O futebol deixou de ser jogo, perdeu inclusivé a sua dimensão de desporto (entendido este na sua acepção antropológica) para passar a ser uma mercadoria subordinada às regras do mercado – oferta e procura. Assim, a dimensão lúdica do futebol está remetida para quem o compra, da mesma forma que compram teatro, cinema ou outra forma de arte.
 

O futebol só é prazer e espectáculo para quem o observa e vive como espectador. Neste papel todos os desvarios e sonhos são possíveis. Momentos de festa e convívio, espírito de corpo que pode abrir caminho a comportamentos desviantes quando a cultura cede à ânsia doentia de afirmação o que recorrentemente determina a emergência de preconceitos xenófobos. Usualmente, estes sentimentos são mais fortes em relação aos grupos rivais endógenos que virados para o exterior. Existe uma excepção, os hooligans ingleses, que privilegiam a violência gratuita como comportamento “normal”, seja em relação aos grupos endógenos seja em relação às equipas exógenas. Nesse particular da violência até são bem democráticos. Hoje a coisa está melhor pelo controle apertado das autoridades policiais.
 

O futebol na actualidade nada tem a ver com o futebol dos primórdios. O futebol nos dias de hoje não é uma simples modalidade desportiva. É um mundo complexo que interage em múltiplas realidades. O futebol passou de jogo a indústria. Ainda mantém o sortilégio, a magia, o encanto, o chamamento, mas só para quem o vê de fora. Quem o vive por dentro, vê-o como profissão, como alavanca de promoção política, como indústria a rentabilizar, como palco de vaidades, como estratégia financeira, como meio de lavagem de dinheiro sujo, como meio de dissuasão de tensões sociais, etc., mas nunca o sente na sua essência lúdica, porque isso é desejo de nefelibatas alheios à realidade intrínseca do futebol.

O futebol é um espaço de vida e de medo. O carácter humano do jogador (podemos com igual pertinência colocar aqui a palavra treinador) é posto à prova a cada momento. No futebol não existem amortecedores ou paliativos para a incompetência que pode ser passageira, fruto de flutuações de forma ou de problemas de saúde física ou mental, mas que é questionada dia-a-dia por juízes inclementes que propugnam com ligeireza sempre novas soluções. O jogador, ou seja, o homem com personalidade e carácter, aceita as regras do jogo e luta pelo seu lugar ao sol que é muitas das vezes fugidio como a areia entre os dedos; o ser pusilânime vinga ou numa lógica de sabujice ou numa atitude de demissão, tentando explorar ao máximo a lógica mercantil do sistema. Várias vezes ouvi da boca de muitos jogadores, em tom sério e denunciador, que no futebol só existem dois momentos bons – o fim do mês e os banhos e massagens.
 

Embora, esporadicamente se manifeste como um espaço de humanismo e solidariedade, usualmente o futebol caracteriza-se por um ambiente de luta, com predadores e presas e uma lógica de superação alicerçada em pressupostos darwinistas.
 

O futebol, tal como o trabalho na fábrica ou empresa, é subsidiário da repetição e rotina. Desenvolve-se em ciclos pré-estabelecidos, monótonos, que determinam rotinas diárias quase sempre repetitivas o que origina por vezes situações de saturação e comportamentos senão desviantes pelo menos deslocados ou desregrados. Desenvolvem-se automatismos de acção que privilegiam o adestramento tout court em detrimento da acção consciente. A rotina dificulta a reflexão inteligente, ou seja, a procura do domínio do envolvimento em estratégias de acção e movimento dirigidas a objectivos claros. Repete-se metronomicamente o que cria bloqueios à criatividade. Como existe um perigo latente na criatividade não conseguida, o futebol, cada vez mais, se resume a estereótipos motores que relevam pouco da liberdade de acção e pensamento. Depois, existe a acção do treinador que se constitui muitas vezes como factor condicionador da liberdade de ação do jogador. O futebol atual desenvolve autómatos diligentes que muitas vezes agem, não em função da alteridade do envolvimento, mas em reflexos condicionados ao estímulo constante do treinador. O berro ensurdecedor exterior substitui muitas vezes a análise pessoal do jogador, coarctando-lhe a liberdade e consciência de acção.
 

Jogo como dimensão e vivência de liberdade não existe mais no futebol mercantil. Ainda subsiste em momentos de espontaneidade juvenil ou em nichos despreocupados de jogadores de ocasião, mas não no futebol-instituição regido pelas federações em todo o mundo.

A importância social do futebol é inquestionável. Seja como profissão séria, seja como momento lúdico e de liberdade, o futebol é o fenómeno multitudinário mais importante da actualidade. Seja como indústria seja como momento de evasão e sonho o futebol assumiu um papel único que chega a ultrapassar a dinâmica das próprias religiões.
 

O futebol transformou-se numa religião com os seus “santos” e “pecadores”.
 

O céu e o inferno recriados no seio do futebol. Igreja ou arena? Religião ou ópio do povo? Um pouco de tudo isso, pois, numa época terminal para as ideologias e num momento em que a fé nos dogmas religisosos vai perdendo força catártica e mobilizadora, o futebol para muitos, e um pouco por todo o mundo, alimenta o espírito das emoções que dão um pouco de sal e sentido à vida. É uma suave alienação assumida na sua devida dimensão sociológica. Simples mundo de arte construindo momentos de sonho e evasão.
 

Rejeitamos a perspectiva que muitos ideólogos ou pensadores marxistas serôdios propugnam. O futebol é um fenómeno alienante, e ainda bem que o é. Só os pensadores ingénuos pensam que o essencial da luta de classes é alienado pela coisa futebolística. O homem actual está desperto para o essencial da sua vida. O futebol é assumido como evasão. Hoje, como sempre, nunca a luta na fábrica ou empresa foi anulada pela fruição lúdica do futebol. O futebol não aliena o espectador da sua luta social. Talvez até contribua para o reforço do empenhamento do homem explorado na sua luta pela dignidade profissional e social.
 

O futebol vive assim com a força do paradoxo que o consubstancia. Momento de ócio libertador/alienador para quem o aprecia externamente, negócio sério e exclusivo para que o vive como profissional.
 

Qualquer agente integrado no mundo imenso do futebol relega a dimensão lúdica e espectacular para segundo plano. O que interessa é ganhar. Por vezes a qualquer custo, mesmo por sobre as regras da conduta normal e pondo muitas vezes em jogo acções sub-reptícias concretizadas em pressões e influências que podem desvirtuar a denominada e eufemística “verdade desportiva”. Para esses o futebol não é desporto – é guerra com espiões, traidores, heróis e eunucos.
 

O mundo do futebol vive repleto de excessos. Excesso na importância antecipada do resultado, excesso na tentativa frustre de minimizar esse mesmo resultado quando é negativo. Quando tal acontece, tenta-se encontrar sempre uma justificação exterior às responsabilidades internas ou pessoais. Todos tentam aligeirar a carga da derrota, e são raríssimos os que assumem a sua quota parte de responsabilidade. Treinei e orientei mal a equipa, preparei-a mal fisicamente, não dei o suporte psicológico necessário aos jogadores, não paguei a tempo o que se reflectiu em stresse acrescentado nos jogadores, e outras frases da mesma dimensão nunca foram ouvidas no futebol. A culpa é de todos menos minha. E ouvem-se desculpas tão esfarrapadas como a relva estava demasiado crescida e prendia a bola, a relva estava muito curta e acelerava a bola, a bola estava muito cheia ou vazia, a comida caiu-me mal ou puseram qualquer coisa na sopa que me deu sonolência, os jogadores são maus profissionais e não cuidam do “treino invisível”, os dirigentes não souberam “falar” ao árbitro, etc, enfim uma série de subterfúgios que tentam esconder a inoperância global ou pessoal nos resultados negativos.
 

A análise fria e racional dos comportamentos e resultados pressupõe uma formação sólida que ultrapasse o imediatismo das situações. Necessita-se de uma atitude científica que erradique certezas e privilegie sempre soluções inovadoras e adaptadas a cada momento e situação. Inteligência em acção é a solução e o futuro do futebol. Mas isso, que se começa a vislumbrar aqui e ali, pressupõe a coragem do treinador em se apagar em detrimento do jogador lúcido e autónomo. Meter a ciência na arte para ser mais arte ainda.
 

A ciência foi entrando paulatinamente no seio do futebol. Entrada difícil, pois, muita ciência deixa pouco espaço de manobra para os charlatães da arte. Num mundo que eleva o irracional ao estatuto de metodologia é difícil a razão e a ciência entrar de forma radicalmente transformadora. Quando cheguei ao futebol português a metodologia científica de treino era assunto esotérico que se estudava na universidade, mas sem aplicação prática no terreno. Com a entrada dos denominados “preparadores físicos” tentou-se dar um cunho de profundidade científica ao trabalho no futebol, mas a intervenção reduzida desses profissionais entroncava na sua incapacidade de alterar mentalidades, estando-lhes adjudicada uma parte importante, mas não fundamental, do treino – a preparação inespecífica e o aquecimento.
 

Este delimitar de espaços de intervenção prendeu-se com a necessidade corporativa de defender a classe de treinadores da intervenção metodologicamente mais apurada dos agentes com formação superior no campo do treino desportivo.
 

Tentou-se assim encontrar um ponto de equilíbrio entre a ciência do “preparador físico” e a arte do treinador. A dicotomia funcionou e funciona ainda, penso, como patamar intermédio até à emergência do treinador com formação científica completa que se constituirá como administrador de um corpo plural operativo formado pelas equipas técnicas, médicas e administrativa. Aí o treino será um todo integrado e não o somatório de partes avulsas que relevam da especificidade técnica de cada agente interventor.
 

A dimensão aleatória do futebol é imensa. Daí resulta uma carga de incerteza que inviabiliza a penetração natural da lógica científica. Faz-se tudo correcto respeitando os ditames da dinâmica (interna e externa, biológica e psicológica) da carga e perde-se o jogo, e logo se abre espaço para a reflexão transcendental e cabalística. O resultado é o carrasco da ciência. Se o médico não salva o doente entra o curandeiro com a suas mezinhas e fumigações. Sai o doutor entra o místico. Sai a ciência entra a cabala. É fácil passar do campo das leis físicas e bioquímicas para os dogmas do imprescrutável. Quando as coisas falham no plano das estruturações metodológicas, rápido se assume a dependência do obscuro, seja no ritual cabalístico seja na recorrência à potenciação anómala. O futebol, tal como outras actividades humanas, é permeável às manobras de potenciação química. Ninguém pense que o futebol, imerso numa sociedade que se droga, poderia ser um espaço quimicamente asséptico e eticamente puro. A droga sempre campeou no futebol e somente as práticas persecutórias desmobilizam a sua utilização. Tem sido uma luta de gato-rato entre a tendência usual para a dopagem e os esforços de controlo. Luta difícil, pois os organismos estatais foram (serão ainda?) permeáveis à corrupção. Antigamente os jogos que eram sorteados para o controlo sabiam-se com antecedência por fugas de informação bem pagas.
 

Para mim foi difícil conviver com a droga e os jogos de bastiador. Muitas vezes me senti perdido no esforço de me localizar em função dos meus valores. Não saí e continuei. Hoje penso que fiz bem, pois o meu esforço quotidiano de persuasão bem como a eficácia da minha intervenção na melhoria da condição física dos jogadores permitiram, pelo menos a muitos jogadores jovens, passar ao lado desse flagelo do desporto. Nunca assumi critérios éticos para condenar a utilização de drogas, mas única e simplesmente critérios de saúde e de rendimento futuro. Estive e estou sempre ao lado dos jogadores porque eles são a razão de ser do futebol. Um dia inquirindo um jogador com a melhor condição física de todo o plantel da razão porque tomava anfetaminas, retorquiu: “Eu sei professor que não preciso disto para correr, mas sim porque me faz perder o medo”.
 

O futebol é um meio privilegiado para criar valores, e cria-os em catadupas, mas poucos se aproveitam em termos de relevância social humanística. Embora teoricamente se afirme como meio de educação o futebol deseduca e faz, de forma recorrente, apelo aos sentimentos humanos mais hipotalâmicos, ou seja, aos instintos básicos da espécie não tocados pela capa efémera da cultura. A análise fria e racional no futebol só existe na mente de alguns comentadores sérios que fazem disso profissão. O usual são as análises inflamadas ou pelo fogo catártico das paixões dos apaniguados ou com a força de alguns interesses corporativos que estão sempre à procura da agulha no palheiro (se, de vez em quando, não se incendeia o futebol com as chamas de um qualquer processo disjuntor a indústria fenece). A dissensão é a alma do futebol. É privilegiada, de tempos a tempos, pelos corifeus da indústria, como ritual purificador que permite alimentar quer a força apelativa do grupo quer a manutenção e sobrevivência de alguns mass media.
 

Isto pressupõe que o mundo idílico que transpira para a sociedade está longe de corresponder à realidade. A pressão sobre os jogadores e principalmente sobre os treinadores é terrível. Cada semana a espada de Dâmocles balança ameaçadora sobre a cabeça dos treinadores. Num meio que considera o futebol não um jogo com a sua dimensão aleatória, mas uma indústria ou actividade comercial e financeira, o êxito é sacralizado e imposto como imperativo funcional. Tudo gira à volta do êxito. Mesmo os sócios mais cultos e cientes da aleatoriedade do desporto exigem reparação para o insulto do inêxito, e sem cuidar de análises mais profundas que poderiam fazer emergir a génese da insuficiência, afinam pelo diapasão dos apaniguados mais fanatizados e toca a fazer purgas punitivas sobre os principais responsáveis da desgraça – os treinadores. Estes também contribuem para a perpetuação duma atitude de subordinação à roda da sorte. Prometem, ab initio, mundos e fundos, sem sentido das responsabilidades e somente exprimindo o que a turba multa deseja ouvir. Depois, bem ... é o desânimo estampado na face, a assunção de papeis ridículos na procura de uma tábua de salvação e, em última instância, a procura dum palco providencial para afirmar a sua inocência – os mass media. São poucos os que têm coragem de afirmar que a derrota é nem mais nem menos que um dos resultados possíveis das contendas desportivas e que assumem, como princípio regulador do sistema, o seu papel de vítimas principais.
 

Cada campeonato começa com um capital de confiança a gerir por cada treinador. Cada derrota reduz esse capital até ao ponto da bancarrota. Uns clubes dão mais capital inicial aos treinadores que outros, o que muitas vezes não tem a ver com a dimensão da confiança que se vai paulatinamente perdendo, mas com a dimensão dos contratos estabelecidos que inviabilizam novas soluções por impossibilidades financeiras. Tirando raras excepções que nos vêm da Grã-Bretanha, e o caso particular do F. C. Infesta (onde o treinador Mata permaneceu incólume durante muitos anos), todo o treinador, mais tarde ou mais cedo, tem o espectro do despedimento a manchar-lhe o currículo. E isso, por mais êxitos que tenha tido, pois no futebol o instante é vivido com intensidade, mas rapidamente perde força e procura-se novos instantes que deem sentido aos anteriores. O futebol é o mundo da impaciência, e, da mesma forma que se não chora sobre leite derramado também não se valorizam os êxitos para além dum tempo normal de fruição que muitas vezes não ultrapassa um par de meses.
 

A minha vida no futebol ficou sempre tocada pela dicotomia que o caracteriza. Muitas vezes me encontrei a perguntar: Qual a dimensão real do futebol?
 

Talvez aquela que é visada promocionalmente pelas grandes multinacionais de artigos desportivos, talvez aquela que é perseguida tenazmente por todos os mass media sempre na brecha para desvendar segredos e acicatar dissensão, talvez aquela que promete contratos milionários aos artistas do jogo e depois não lhe paga (onerando recorrentemente os responsáveis vindouros), talvez aquela da batota química que faz ir mais longe o pulmão, mais rápida a perna, mais célere o raciocínio, talvez aquela dos empresários que umas vezes funcionam como sanguessugas impiedosas outras como juízes reguladores do poder antes discricionário dos clubes, talvez aquela de multidões alienadas em paroxismos de violência, talvez aquela que é guardada por cães raivosos espreitando os cães raivosos que assistem ao jogo com a bile a escorrer-lhes dos maus fígados, talvez aquela que promove catarses alienadas para vidas alienadas, talvez aquela dos seres pusilânimes e videirinhos, entre os quais muitos políticos, que gravitam o espectáculo à espera que a entrada nessa órbitra os catapulte para os céus do poder ou lhes dê mais poder, etc.
 

Mas existe uma dimensão outra, a que vale. A que dá migalhas de sonho e alegria mesmo quando o céu está manchado de sangue e ódio. Esse é o futebol genésico, futebol-libertador, futebol-festa, futebol-convivialidade, futebol-gratuito, futebol-desporto, futebol-alegria, futebol-vida. Aí, o homem, qualquer que seja a sua condição, encontra-se a si próprio encontrando o outro. Descobre-se, descobrindo o outro. Potencia a sua auto-estima, respeitando o outro. Aí, o sortilégio deste inigualável fenómeno multitudinário assume a sua mais profunda expressão lúdica, criando não um mundo virtual, mas um mundo real, tangível, de elevação interior – o mundo do sonho que permite esquecer tudo, morte, fome e desespero. O futebol substitui-se então à religião porque é ele próprio uma religião. Não uma religião de dogmas e fanatismos, de guerras e sectarismos, mas uma religião de encontro e elevação numa suprema expressão transcendental.
 

De um artigo de Jefffrey Fleishman no Los Angeles Times retirei e acrescentei a seguinte reflexão.
 

Baghdad. Ano de 2003 no calendário cristão. Nawar Jawad que ganha 1 dólar por dia numa fábrica de lanifícios, em fintas rápidas de corpo que levantam uma nuvem de pó do campo em terra semeado de pequens pedras, isola-se frente à baliza e marca um golo. Os seus colegas correm a abraçá-lo enquanto os rapazes que assistem batem palmas e as raparigas dançam. Por momentos toda a violência, toda a incerteza, esfumam-se como por milagre e o gesto perfeito transforma-o num homem novo.
 

Nesta nação dilacerada, em cada canto do país, os campos de futebol ganham de novo vida. Muitas balizas não têm redes, muitas equipas não têm equipamentos, alguns jogam em sandálias ou descalços, os lances misturam risos e sangue (este, sangue desportivo das quedas e choques), e no final, com o escurecer, todos regressam a casa iluminando de novo os medos das noites de terror.
 

Isto é o futebol e vida no Iraque. Medo e alegria. Novas perspectivas ensombradas em novos medos. Mas hoje o futebol está vivo e dá nova vida ao Iraque. Sadam Hussein regia o país de forma ditatorial, controlando todas as facetas da vida social, forçando o alistamento compulsivo dos jovens nas forças armadas ou noutras funções estatais. Hoje, malgrado as dificuldades, os jovens têm mais tempo livre para si e ocupam-no fazendo aquilo que mais gostam – jogar futebol.
 

Uday Hussein, filho do ditador, dominava de forma brutal o desporto iraquiano. Os jogadores da equipa olímpica iraquiana de futebol chegaram a ser presos e torturados por causa dos maus resultados, e os melhores jogadores, porque lhes faltava convicção ou ligações políticas, era-lhes sonegada a possibilidade de participação ao mais elevado nível.
 

Sem Uday, o futebol ganhou novo alento, mais organizado ou menos organizado, os campeonatos começaram mexendo o país de norte a sul. Alguns campos ainda apresentam sinais da guerra, mas nada impede os jovens depois dos exercícios de strechting, beberem um pouco de água e dar início ao jogo. Os veículos militares passam na estrada, ouve-se ao longe os barulhos de um casamento, mas o jogo Youth of Independence-Abas Union começa, não sem antes os mais jovens limparem o campo de lixo, plásticos, papeis, pedras e excrementos de ovelhas. Mais tarde, do minarete ouve-se a chamada para a oração, mas o jogo não pára. Sinais dos tempos e do direito inalienável de cada um a si e ao seu tempo. Talvez o futebol seja uma factor importantíssimo para a secularização duma sociedade aferrada a tradições que ligam o poder político ao poder religioso. Talvez o futebol contribua para a democratização da sociedade iraquiana pois sobrevoa credos, raças e condições sociais. O futebol é um extraordinário nivelador social, pois todos nele encontram o seu espaço de afirmação. A lógica hierárquica assenta na valorização da excelência performativa, daí nada mais democrático que o futebol. Se no tempo de Sadam Hussein a selecção dos melhores era feita tendo em conta a coloração política hoje o caminho está aberto para o futebol funcionar na sua essência, ou seja, procurar sempre os melhores intérpretes do jogo.
 

O jogo entre o Youth e o Abas terminou. Ganhou a juventude. Bom presságio. Sinal que o futuro espera este país. O sol põe-se no horizonte e um jogador sobraça a bola toda arranhada com um carinho especial por esse brinquedo que lhe permitiu o sonho e a evasão. Por sobre as ruínas da guerra o futebol é mais um motivo de esperança.

Seoul, 4 de novembro de 2003

José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto