Espaço Universidade Analisar os resultados dos J. O. (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 46)

ESPAÇO UNIVERSIDADE11.08.202123:14

Após a euforia inicial, a euforia do melhor resultado de sempre de Portugal em J. O., após a exaltação dos objectivos nos Jogos Olímpicos de Tóquio terem sido “plenamente atingidos, senão ultrapassados” *, após se terem lançado os foguetes é necessário apanhar as canas.

"Tínhamos previsto um resultado não inferior a duas posições de pódio, alcançámos quatro. Um resultado não inferior a 12 diplomas, alcançámos 15, nos quais se incluem os quatro pódios” foi o mote. Para reforço acrescentou-se que  foram alcançados “três recordes nacionais, cinco recordes pessoais, 17 melhores marcas em Jogos Olímpicos e 26 melhores classificações também em Jogos Olímpicos” conseguidos por atletas portugueses. Alguém que falou em nome de todos os portugueses afirmou que “foram superadas todas as metas contratualizadas e as expectativas dos portugueses.” Afirmações que dão razão a Millôr Fernandes: “o homem é um produto do meio. O meio é um produto do homem. O produto é um homem do meio.”

Olhando para os números a frio, a tirania desses mesmos números na realidade aponta para o melhor resultado de sempre, mas essa mesma tirania cria falácias. Pretendermos só analisar os resultados será redutor, pelo que teremos de recorrer também ao destaque da filáucia de alguns competidores e à ausência de hombridade de outros, onde poderemos também incluir treinadores e dirigentes.

Nuns J. O. onde desfilaram cerca de 11 mil competidores em representação de mais de 200 países, nuns J. O. em que o COP recebeu do Estado 18,5 milhões de euros de 1 de Janeiro de 2018 a 31 de Dezembro de 2021 para a preparação olímpica de desportistas que estiveram presentes em Tóquio – mas também de alguns que não estiveram lá, pois chegaram a ser 141 –, poderíamos analisar os resultados da comitiva portuguesa analisando a classificação dos competidores em relação ao número de presentes em cada uma das provas (rácio classificação/participantes), poderíamos analisar esses resultados comparando-os com as medalhas ganhas por outros países com uma população semelhante a Portugal, ou até em relação a países com PIB parecido com o nosso (Portugal rondará o 49º posto em termos de PIB e é o 38º no Índice de Desenvolvimento da ONU) ou ainda em relação a países com o mesmo número (ou aproximado) de participantes nestes Jogos… alguém mais habilitado o fará! Seguiremos uma outra linha, até porque, como dizem os japoneses, “quando um sábio aponta para o céu, o ignorante olha para o dedo.”

As 4 medalhas conquistadas posicionaram-nos num 56º lugar numa tabela em que apenas 86 países foram medalhados. Logo, abaixo da metade e no limite final dos dois terços. Ahhhh, mas participaram cerca de 200 países! Sim, aí ficamos no início do segundo quarto…

Olhando só para o medalheiro de todos os J. O., Portugal esteve presente em 23 Jogos antes de Tóquio 2020. Em 11 destes Jogos teve um lugar inferior ao 56º lugar obtido nos presentes Jogos. Nos restantes 12 a posição no medalheiro foi superior… E se o esquecimento é próprio da sociedade, ou dos indivíduos, não é por esse motivo que a história é reescrita…

No medalheiro actual, Portugal está a um nível da Etiópia… abaixo da Eslovénia, Grécia, Irlanda, Ucrânia, Bielorússia, Roménia, Eslováquia e Áustria. Longe da Bulgária, da Bélgica, ou da Croácia, e muito longe de países como a Dinamarca, a Suécia, a Suíça, a Espanha, a Noruega, a República Checa ou a Polónia (esqueçamos a Itália, a Alemanha e a Grã-Bretanha). Países europeu depois de Portugal só a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Finlândia. E nem valerá a pena falar dos Países Baixos (36 medalhas, 10 de ouro) ou da Hungria (20 medalhas, 6 de ouro), ou até daqueles que se situam nos antípodas: a Nova Zelândia, um país com metade da nossa população, conquistou 5 vezes mais medalhas (20 medalhas, 7 de ouro).

Esta foi a terceira maior Missão Olímpica de sempre. Noventa e dois desportistas! Não sabemos quantos treinadores, quantos médicos/fisioterapeutas, quantos árbitros/juízes, quantos dirigentes – sim, porque para o cômputo geral todas as presenças implicaram despesas…

O desempenho da Missão Olímpica, que se iniciou com desaires atrás de desaires, logo começou a ser branqueado na comunicação social e nas redes sociais. “O 5º lugar foi o melhor 3º lugar de sempre nos J. O.” ou “ o 11.º lugar a 75 centésimos da final, o terceiro melhor resultado olímpico” foram narrativas que nos começaram a inundar. E eram premonitórias…

“É difícil falar neste momento porque não me preparei para um discurso de derrota. A única coisa que me cabe dizer é: desculpa. Desculpa, Portugal!” Há, para além da imprevisibilidade do resultado, variáveis que um(a) competidor(a) e um(a) treinador(a) não conseguem dominar, não podem controlar. Os resultados também dependem dessas variáveis. Por isso o acaso, por muito que muitos não o queiram admitir, está presente no desporto. Uma desportista que fica à beira de um lugar de pódio, uma competidora que se preparou a longo prazo para estar no seu pico de forma nos J. O. mas porque devido exactamente a essas variáveis não consegue alcançar o pódio, não tem que pedir desculpa a Portugal. Nem aos portugueses. Mas devido à imprevisibilidade do resultado deveria ter preparado um discurso de derrota. Faz parte do planeamento, principalmente quando sabemos que a este nível os participantes são sempre solicitados no final das suas provas para prestarem declarações à comunicação social. E o planeamento não é da sua responsabilidade. Mas a sinceridade acima de tudo!

E se “não podemos ser esquisitos quanto à cor das medalhas”, quando se possuem responsabilidades no campo do treino de um competidor nos J. O., teremos mesmo de ser esquisitos quanto à cor das medalhas, pois só uma nos interessa: a de ouro. A alta competição não se compadece com amadorismos. Temos de deixar de ser pequeninos, tal como teremos de deixar de ser pequeninos quando um competidor afirma que “é melhor um 10º lugar do que um 11º ou qualquer outro.” É um competidor que está completamente errado no seu modo de ver as coisas, o que influencia a sua prestação psicológica no desenrolar da prova.

Mas de realçar o atleta que reconhece o seu desaire ao afirmar “falhei no dia errado”. Falhar faz parte do desporto… haver dias errados também. E que o erro sirva para ser corrigido para que num próximo dia errado a falha não aconteça.

E também houve quem dissesse que “queria fazê-lo bem e não pude”. Alguém operado a um joelho a três meses de uns J. O. nunca se poderá apresentar nestes na sua melhor forma. Que medidas ditaram a sua presença nos mesmos? Um atleta que, vítima das suas próprias palavras, “aprendeu com a vida”. É de lamentar que quem nos deu tantos resultados, quem nos deu tantas alegrias, saia do circuito olímpico pela porta pequena. Como dizem os japoneses, “quando um olho está fixo no destino, só resta um olho para encontrar o caminho."

E felizmente que existem atletas que são capazes de reconhecer que “estou muito bem mas nem sempre o nosso muito bem sai e se realiza no grande momento. (…) A cabeça manda muito, o corpo manda ainda mais (…).” A desmistificação de que a mente comanda o corpo… ou de que os limites são para se ultrapassarem…

E felizmente também a existência de atletas que dão conta de que “e foi aí que eu cometi a falha – e por isso sim, o erro foi da cavaleira porque o cavalo estava perfeito.” Aqui sim, aprende-se com o erro, mais um que serve para ser corrigido como a própria reconheceu. Recuperar de adversidades é uma coisa, quando elas foram originadas por variáveis que estão - e sempre estiveram - fora do nosso controle. Cair voluntariamente nessas adversidades é outra totalmente diferente!

Se uma competidora não tem noção das possibilidades do seu rendimento isso só se poderá dever a uma de três coisas: mau planeamento do treino com a consequente preparação insuficiente (estratégica, física e psicológica), falta de competências ou irresponsabilidade. Não queremos acreditar que tenha sido alguma destas duas últimas quando uma competidora afirmou: “tinha boas adversárias na minha eliminatória, mas não sei se dei o máximo.”

A deficiente preparação e planeamentos deficitários de alguns competidores ficaram latentes quando foi afirmado o seguinte: “passei uma época muito longa, intensa e desgastante (…). Aqui, estou a pagar a fatura de tudo isso, pois não estou no máximo das minhas capacidades físicas e mentais.” Não são só os que são visíveis que possuem responsabilidades nos resultados dos Jogos. Treinadores e dirigentes, apesar de na sombra, possuem tanta ou mais responsabilidade que os mesmos. É inglório sacrificar-se carne para canhão quando os decisores são os principais responsáveis. “Relativamente às provas, não tivemos provas. Não treinámos para isto, estamos cá a lutar.” Ficou demonstrado que lutar não chega. Como dizem os japoneses, “visão sem ação é um devaneio. Ação sem visão é um pesadelo”. O desporto ignora a igualdade de condições desses mesmos competidores – condições individuais diferentes (quer sejam de ordem genética, anatómica, fisiológica ou psíquica), condições de treino diferentes (no que diz respeito a metodologias, a instalações, a treinadores e a todo o restante apoio, incluindo o económico) e até diferentes condições de participação no momento (tempo) comum a todos os competidores (onde os antecedentes e todos os níveis de preparação emergem tal como as variáveis de circunstância momentâneas).

A paixão pela pista surge “muito por causa da adrenalina e pelo espectáculo” proporcionado. Exactamente! Desporto é espectáculo em que se exploram os corpos e que serve para entretenimento e para criar consumidores. Quem lucra com isso? Motivo para reflexão! (E sobre o “quem lucra com isso”, só mais uma questão, embora fora do contexto: a quem interessou o Karate no programa destes J. O?).

E para meditarmos sobre resultados, terminamos com uma interrogação: tem mais significado um 20º lugar quando estão presentes 88 atletas e só 73 chegam ao fim ou um 3º lugar entre apenas 12 concorrentes?

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* Propositadamente não identificamos os autores das declarações que transcrevemos e citamos. Leitor atento facilmente reconhecerá os que as proferiram.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.