Espaço Universidade Pedro Pablo Pichardo (artigo de José Augusto Santos, 23)
Quando sou bombardeado por ondas de chauvinismo, intolerância, nacionalismo doentio, mentira, intriga, evanescência dos valores de humanismo, racismo auto- e hétero manifestado, pacifico as minhas exaltadas emoções ouvindo o «Imagine» de John Lennon. Esta canção é o único hino universal que coloca os valores no seu devido lugar, é uma verdadeira bússola axiológica. Para nos limparmos de preconceitos deveríamos ouvi-la de vez em quando, algo assim como uma higiene mental e purga afetiva.
Hoje, como homem do desporto que vive nele mergulhado até ao paroxismo, não poderia deixar de dizer o que me vai na alma sobre o processo Pedro Pichardo. Não, não nos focalizemos nos aspetos menores, mesquinhos, conjunturais como um timing de naturalização. Tenho, cá para mim, que todo o cidadão do mundo, ao nascer, deveria ser-lhe atribuída a cidadania portuguesa. Porquê? Porque, para o bem e para o mal, cinco séculos antes da internet Portugal uniu os quatro cantos deste mundo redondo. Fomos nós, com o nosso impulso genético para a viagem que nos lançamos na aventura de dar o mundo ao mundo. Não fomos nisso originais pois recebemos a pulsão para a viagem dos grandes navegadores fenícios, gregos e vikings que, antes de nós, fizeram do mar sepultura para muitos dos seus.
Mas, na pasmaceira europeia do século XV, fomos nós que demos o tiro de partida. Que descobrimos? Além de terras novas em diferentes geografias ou terras conhecidas por novos caminhos descobrimos que o ser humano é uno na sua pluralidade. A riqueza do ser humano é a sua diversidade cultural derivada de uma mesma matriz genética. Hoje não é dia para fazer a mea culpa dos erros fantásticos que cometemos. Talvez o maior de todos tenha sido que os ventos que propulsionavam as caravelas levarem no seu bojo uma forma de pensar o transcendente muito diferente do dos povos que contactamos. Sim, somos culpados de ter levado «civilização» a alguns que dela não necessitavam. O problema não foi o vento que enfunava o velame das caravelas, mas a cruz que as distinguia.
Onde quero chegar? Para já fazer uma petição de princípio assente em dois postulados: (i) Só existe uma raça - a humana; (ii) Todos os ditos brancos nada mais são que pretos esbranquiçados pela lixívia da setentrionalidade. A partir daqui podemos tentar interpretar a medalha de Pichardo. Se a utopia a que almejamos tem a sua bíblia consubstanciada na canção de John Lennon, então os países, malgrado os seus alicerces históricos bem determinados, devem ser considerados como construções humanas com utilidade conjuntural, mas a serem ultrapassados no futuro. Espera-se que em um ou dois milénios o conceito de país seja irrelevante. Façamos figas para que as pulsões hipotalâmicas mais baixas não controlem o neocórtex da humanidade e a reduzam ao pó genésico.
Não, não me chamem nomes. Logicamente que tenho orgulho em ser português como deve ter orgulho em ser papuense nova-guienense (estou a inventar; não sei se é esta a denominação) um habitante da Papua Nova Guiné (já agora, fomos nós portugueses que descobrimos este território em 1511, embora hoje integre a Commonwealth). Hoje, enquanto o conceito de país e nacionalidade ainda perdura, cada cidadão de cada país deve ser patriota. O que significa isso? Significa comungar de uma mesma história, no bom e no mau que essa história outorga, manifestar um sentimento de identidade e solidariedade com os compatriotas, na assunção dos valores básicos que devem reger todos os grupos humanos entre os quais devem sobressair a paz, tolerância e convivialidade.
Ser patriota é estar aberto ao mundo vestido com a roupagem cultural específica do lugar onde se nasceu, mas pode também ser a assunção de um território humano que nos permitiu a realização mais elevada do humano que habita em cada um de nós.
Sim, ser patriota é estar aberto ao mundo e numa sã competição com os outros países aproveitar o ensejo de afirmação das forças intrínsecas do meu país. Isto é verdade no desporto como na engenharia civil, arquitetura, microbiologia, cibernética ou física das partículas.
E regresso ao início desta reflexão. O Pedro Pablo Pichardo é tão português como eu e os meus filhos, com uma vantagem – escolheu ser português. Entre as benesses dos nossos erros, nós, portugueses, espalhamos miscigenação um pouco por todo o lado. Outros povos europeus foram mais parcos na miscigenação. Quem pode dizer que o Pedro Pichardo não tem sangue português? Mas isso não interessa para o caso. Ser humano é integrar um grupo zoológico específico culturalmente denominado humanidade. Esta, não pode ser um conceito abstrato. A humanidade é consubstanciada em indivíduos reais com os seus problemas e idiossincrasias. A história de Pichardo relata-nos uma saga de um homem à procura daquela coisa inefável que se chama liberdade. Que Pichardo tenha escolhido Portugal para ser livre só nos honra. Temos de orgulhosamente o receber de braços abertos.
Ser português é ser guineense, angolano, moçambicano, goês, timorense, macaense e além disso considerar todos os outros bem-vindos quando vierem por bem. Pedro Pablo Pichardo deu-nos uma medalha de ouro, mas, mais importante que isso, deu-nos um filho que devemos tudo fazer para que ele sinta sempre orgulho de ser português, esteja onde estiver.
PS. Avé Campeões, Pichardo, Mamona, Fonseca, Pimenta. Parabéns a todos os atletas que no Japão deram o melhor de si. Parabéns a todos os que dentro de portas deram o seu máximo e que não conseguiram lá chegar. Sem estes aqueles não conseguiriam. Lembremo-nos que ser eleito para uns Jogos Olímpicos é um processo coletivo onde a grande maioria (passe o pleonasmo) fica à porta. Esse esforço continuado dos que não conseguem deve ser exaltado da mesma forma que o esforço dos campeões que nos honram com os seus feitos.
Quero terminar com um abraço muito apertado ao Emanuel Silva. Que carreira, campeão! Quando fui treinador do Náutico de Prado eras uma criança de 10 anos que lutava contra os desequilíbrios na modalidade. Quem diria que farias esta viagem maravilhosa consubstanciada na vivência com tanto êxito de quatro olimpíadas. Já ganhaste um lugar nos maiores deste nosso maravilhoso país, país a que pertencem todos os cidadãos do mundo.
José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto