Espaço Universidade Deus em Vítor Serpa (artigo de Manuel Sérgio, 362)
Neste ambiente remansoso da Charneca da Caparica, onde hoje habito, eu, “alfacinha de gema”, nascido, criado e… habituado à doce inquietude de Lisboa, findei a primeira leitura do livro Os Velhos (Cultura Editora, 2021) de que o jornalista Vítor Serpa é o feliz autor. Trata-se de um livro que procura retratar e até inteligibilizar “a experiência vivida e sofrida num hospital de Lisboa” (citei palavras de Manuel Alegre), pelo atual diretor do jornal A Bola, jornalista entre os mais respeitados da sua geração e escritor que arrisca insólitas peregrinações pela filosofia e pela teologia. Mas, afinal, com a filosofia e a teologia procura fundamentar-se os itinerários diversos e, por vezes, contraditórios em que a vida se desdobra. Mas falemos do livro Os Velhos. Relata-nos, em jeito de autobiografia, com todas as “razões do coração”, que se conhecem, o internamento do Vítor Serpa, o seu autor, no Hospital de Santa Maria. Estou a vê-lo, no dia da chegada ao Hospital, em pleno Serviço de Observações (SO), perguntando à médica, em linguagem viva e ardente, desejoso da quietude e dos afetos dos seus : “Acha que posso ir para casa?”. A médica olhou-o “com uma sensibilidade solidária e, achei eu, carinhosa: Não. Eu acho que o senhor não vai poder ir já para casa. Deve ficar internado para exames complementares e para conseguirmos estabilizar o seu estado. Daqui só deve sair sem riscos”. E, vivendo embora momentos de um desamparo total, não contestou, “mas ainda tentei um pedido atabalhoado de clemência. Expliquei que nunca tinha ficado internado num hospital, que era um daqueles doentes de ansiedades incorrigíveis, que talvez pudesse recuperar melhor (…). A médica da touca cor-de-rosa limitava-se pacientemente a ouvir a minha patética dissertação. Dei conta do disparate do arrazoado. Que sim, dava o meu consentimento. A decisão clínica era o mais importante e eu tinha de me conformar e de respeitar. Consentimento dado. Iria então ficar internado” (pp. 14/15). Hoje, os médicos já sabem que são mais do que fisiologistas, ao contrário do que pensava o positivismo e, nas relações com os doentes, primam pela compreensão e pela afabilidade. O médico de testa erguida e porte arrogante, diante do doente expectante e transido de insólitos receios, só muito raramente se descobre na vida hospitalar dos nossos dias…
E, porque o sono não chegava, uma ideia itinerante e perdida lhe ocorre: e Deus? As saudades da mulher, sempre presente, sempre solícita, sempre amiga e das filhas e, designadamente dos netinhos; as dificuldades que atormentam a Comunicação Social, no nosso país, sem o mínimo exigível de desafogo económico; o trabalho, dia e noite, dos médicos e dos enfermeiros, que não se julgam feitos para si, mas para serem úteis ao mundo todo; aturdido pela vida hospitalar e pelas “maleitas” que o limitavam à estranha atmosfera de um mundo de fármacos e de exames médicos; a permanente e cansativa vigilância em relação a uma saúde frágil; o banho purificador das conversas habituais com os amigos, nos quais eu me conto (e contarei, enquanto vivo for) – apesar de tudo isto (que é muito) Deus, o Invisível Evidente, desponta, como inesperada aparição, no livro de Vítor Serpa. “Confesso: eu desejaria não pensar como penso, sermos uma célula cósmica, que vive e morre como qualquer célula do nosso corpo. Dar lugar ao outro sempre foi uma contrariedade mas, na verdade, não acredito que sejamos mais do que uma simples e minúscula célula que apenas importa numa existência maior e mais significativa e que vive, precisamente, desse ciclo de vida e de morte das suas das suas células. Não pensem que desvalorizo Deus, ou a ideia de Deus. Admito, mesmo, que é um invejável privilégio acreditar numa existência transparente e celestial das almas. Ter fé, como se tem coração, fígado ou pulmões (…) Crer é o alimento mais substancial da nossa imensa ignorância. Crer é o que nos resta aquém e além do que sabemos e conhecemos” (pp. 96/97). Ao jornalista Homero Serpa, pai do jornalista Vítor Serpa, chamava-lhe eu um “santo laico”, tão singular era a sua vida no amor ao próximo, principalmente ao mais necessitado. E numa das nossas conversas pós-prandiais, num dos restaurantes do Estádio do Restelo, cheguei mesmo a dizer-lhe: “Homero, o que tu praticas se não é uma religião, é um cristianismo sem Igreja”. Tenho a certeza que o Vítor Serpa, neste ponto, se ajusta ao legado que o Homero lhe deixou.
No Assim Falava Zaratustra, Nietzsche proclama: “De todos os escritos, só amo os que se traçam com o próprio sangue. Escreve com sangue e tu aprenderás que o sangue é espírito”. O livro Os Velhos também foi escrito com o sangue. O lúcido empenhamento de Vítor Serpa na criação de um jornalismo, como forma literária, e como a expressão literária de um novo humanismo não pode concretizar-se (diz-se) porque não tem leitores e, se não tem leitores, não tem publicidade e, se não há publicidade, não se descobre o dinheiro para os gastos habituais. O Vítor Serpa não é, como o Eça e o Junqueiro e o Antero (et al.) um “vencido da vida”. Pelo contrário, rebela-se, com ciência e consciência, contra as misérias do efémero quotidiano. E, como os famosos e vencedores “Vencidos”, nem as esconde, nem deixa de sugerir os necessários remédios, nem oculta, aqui e além, uma palavra de inexprimível angústia, como a que lhe veio à mente, diante de mais um velho que jaz, abatido e triste, na cama do hospital… porque ninguém o quer! Neste livro, da autoria de um homem culto, um jornalista brilhante e que pauta a sua existência trabalhosa e exigente pelo ritmo do mundo que o rodeia, muito é possível evocar e retratar. Fui companheiro assíduo de convívio fraterno com o inolvidável José Maria Pedroto. Certo dia, em conversa com ele, ainda lhe perguntei: “Ó Senhor Pedroto, afinal o que já aprendeu, com algum interesse, o meu amigo, com as nossas conversas?”. E ele bondoso, simpático: “É que o Manuel Sérgio diz diferente”. Também neste livro (e não só) o Vítor Serpa diz diferente. Sem deixar de passar pela meticulosa enumeração dos acontecimentos inerentes a um internamento hospitalar, expunge deles o, unicamente, epidérmico e sentimental e lacrimejante e compõe uma obra de um equilíbrio modelar entre a razão e o sentimento. De facto, o livro Os Velhos despede áscuas suficientemente indicativas de uma literatura que é simultaneamente filosofia. E a literatura e a filosofia têm muito que se lhes diga.
Entendamo-nos. O Vítor Serpa deu-se à faina de escrever um livro sobre o seu primeiro internamento hospitalar. E, por entre os ruídos dos longos silêncios, pensou… pensou muito… até em Deus! E concluiu: “A fé essencial estará além e aquém da religião, que se resume a uma sempre menor interpretação humana de Deus. A fé religiosa, programática e receituária, só nos propõe a fé do interesse e da conveniência. A fé num Deus que parte, reparte e dá, de acordo com a conveniência da ziguezagueante moral cristã” (p. 97). E mais adiante aduz ainda: “Todas as igrejas dominam os seus fiéis pela tentação do Paraíso, com ou sem mil virgens à nossa espera. Todas as igrejas ensinam que, em primeiro lugar, está o verbo crer. Crer para ver, crer para saber, crer para não ter de perguntar. Crer é o alimento mais substancial da nossa imensa ignorância. Crer é o que nos resta aquém e além do que sabemos e conhecemos” (p. 97). O Vítor Serpa, com o seu reto ajuizar e independência de critério, já me disse: “Para mim, a Verdade não pode estar submetida ou acorrentada a uma Autoridade institucionalizada. O Magistério da Igreja deve ser fundamentalmente um serviço, o que nunca acontecerá com uma Autoridade hierarquizada, com dogmas, cruzadas, inquisições, etc.”. Neste passo, atalhei: “Também para mim, que me considero cristão e católico, a Igreja é o povo de Deus. E, por definição, o povo é democrático, não é hierárquico. Mas, sempre que a Igreja, ou os seus representantes, erram - é contra os ensinamentos do Evangelho que o fazem”. E quando Estaline mandou prender a poetisa Tania Khodkevitch por ter ousado escrever estes dois versos: “Tu podes orar livremente / Mas… com a condição que só Deus te oiça”, na URSS ninguém o podia condenar porque não havia alternativa ao racismo ideológico do ditador soviético…
O Vítor Serpa é um escritor de nobilíssima estirpe e bem merece ser lido como tal. Desde o seu primeiro livro de ficção, Salão Portugal, editado pela D. Quixote e que foi saudado pela crítica como um dos melhores livros de contos de 2008 e o seu primeiro romance, Tanta Gente em Mim, também editado pela D. Quixote, em 2012, tanto em ficção como em crónicas, se revela um escritor que não se serve apenas da linguagem, mas que é, sobre o mais, linguagem. E, porque é linguagem, o considero eu (bem sei que, na crítica literária, sou um “minimus inter pares”) um escritor que merece aplauso e justificado relevo. Quero eu dizer: o atual diretor do jornal A Bola, como Cândido de Oliveira, Vítor Santos, Carlos Pinhão, Homero Serpa, Carlos Miranda, Alfredo Farinha e os demais fazedores de um jornal que já foi, sem ambiguidades, de excecional valor jornalístico e que nunca se deixava ultrapassar pelo curso dos acontecimentos – e não só desportivos, também políticos, ideológicos ou estéticos. Vítor Serpa, como jornalista, reflete e projeta o que aprendeu com estes grandes mestres. Como escritor, é um verdadeiro compromisso com o que de melhor tem a literatura portuguesa. Um compromisso? De facto, pela sua cultura literária e pela sua criatividade, nele se descobre uma vontade imparável de permanente diálogo com os melhores escritores portugueses. Sem o imobilismo do plágio mas (repito-me) com a “vontade imparável” de ser o que já é: um escritor onde ressalta, nítido, o “corte epistemológico” entre o que pela força dos “ventos da História” já entrou em fase agónica e o que se aproxima do artisticamente possível. Em Vítor Serpa, há assim uma coincidência entre a sua obra e o que para ele é o sentido da História. Como nos grandes escritores…
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto