Artes marciais no início do século XX em Portugal (artigo de Vítor Rosa, 146)

Espaço Universidade Artes marciais no início do século XX em Portugal (artigo de Vítor Rosa, 146)

ESPAÇO UNIVERSIDADE25.04.202116:33

As primeiras imagens de que temos conhecimento sobre as artes marciais orientais em Portugal, sobretudo de jujutsu e de kendo, são reveladas pela revista Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907, quando da passagem, por Lisboa, de dois navios japoneses (Tsukuba e Chilone), sob o comando do almirante Goro Ijuin (1852-1921), oficial prestigiado da marinha japonesa.

Fonte: Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907

Fonte: Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907

Fonte: Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907

Fonte: Revista Tiro e Sport, n.º 373, de 10 de fevereiro de 1908
 

O Coliseu, de volta à cena, reabre com uma nova companhia de circo no dia 28 de setembro de 1907. O lutador japonês Raku deu uma sessão pública de jujutsu, lutando com Diogo Conelli, lutador greco-romano. A sua estreia deu-se no dia 27 de dezembro, tendo lutado também com o brasileiro João Cardoso de Moura, com o inglês Dillon, o japonês Hidesuki Hano e os portugueses Manuel Loureiro Grilo e Rui Cunha. Infelizmente, não temos conhecimento de imagens do acontecimento. Mas os repórteres da revista Illustração Portugueza (n.º 139) registaram o momento, mostrando um grande sentido emocional:
 

Raku entrou na arena do Colyseu e a sua figurita magra, encolhida, os seus óculos, o seu sorriso tímido para aquele público de médicos, de jornalistas, de homens de sport, era como uma desillusão. Aguardava-se uma créatura forte, musculosa, um homem com o ar triumphal de vencedor e d’ahí a surpreza que logo se manifestou n’uns risinhos e n’umas phrases ditas em segredo. Qualquer pessoa se sentia capaz de destruir o pygmeu que se propunha bater-se à face d’uma cidade inteira. Porém, quando elle começou fazendo as suas demonstrações com o seu auxiliar, os risos foram cessando, uma atenção enorme começou a prestar-se ao nipponico, que com a maior tranquillidade do mundo ía vencendo. Por fim, um dos assistentes, rapaz conhecido no sport, quiz experimentar as forças de Raku e saltou para a arena. Dentro de pouco estava por terra, sentia o golpe forte do japonez a estorcegar-lhe o braço e vinha-lhe uma dôr tão violenta que se debatia até que ele o largava com o ar sereno, o mesmo ar grave de sempre. Agora todos rodeavam o sportsman que fazia justiça às qualidades do adversário. N’essa tarde, sob a cúpula do Colyseu, o ju-jutsu começou a consagrar-se para os portuguezes.

Raku exibe-se durante cinquenta e seis noites e matinées. Sabemos també, que vai atuar em Barcelona a partir de 1 de novembro de 1907, no Circo Ecuestre, Teatro Tivoli, surpreendendo, igualmente, os espanhóis. Entre novembro de 1907 e julho de 1910, Raku terá visitado cerca de uma vintena de países europeus, tendo realizado mais de duzentas demonstrações.
 

Era na altura um homem novo (27 anos), de estatura baixa (1,65 m), magro (58 kg) e exibia um bigode preto, pequeno, cujas pontas terminavam na comissura dos lábios, dando-lhe um ar severo. Fazia-se acompanhar por um inglês, de nome Nelson, que exercia as funções de seu secretário. Numa entrevista concedida à revista Tiro e Sport, de 10 de janeiro de 1908, Raku dizia-se natural de Osaka e que o seu pai o tinha obrigado a praticar jujutsu como meio de revigorar a sua debilidade física. Pelas suas naturais aptidões, depressa foi notado pelos seus colegas e foi nomeado instrutor na Escola Militar de Educação Física (“Imperial”) e, posteriormente, na Escola dos Instrutores da Escola de Educação Física da Polícia e na Escola Militar para os Oficiais. O desejo de ser o introdutor do jujutsu no Ocidente levou-o a sair do Japão por volta de 1898 a caminho de Inglaterra, Alemanha, Paises Baixos, Irlanda, França, Bélgica, Espanha e Portugal. Nas demonstrações que fez com esta prática de combate oriental, acabaria por vencer o campeão dos médios e pesados de luta, Gruhn, do Reino Unido. O reconhecimento deste método de combate pelos “ocidentais”, e a procura da “modernização” da formação militar e de segurança, levou-o a ser convidado para ser instrutor de jujutsu em vários locais: Escola Militar de Aldershot, em Shorncliff Camp; Escola Naval Militar e departamentos da polícia inglesa.

Considerado um dos maiores “embaixadores” do jujutsu na Europa no início do século XX, Raku era acompanhado nas suas digressões por vários compatriotas. As suas demonstrações enchiam as salas de espetáculo.
 

Dos vários japoneses que o acompanharam nas suas digressões, dois tiveram um papel determinante na formação de uma geração de portugueses com a arte do jujutsu: Imagiro Hayashi e J. Hirano. Imagiro Hayashi começou as suas peregrinações por Itália, Alemanha, França e Inglaterra, onde encontrou Raku, que aí residia. A convite deste veio a acompanhá-lo até à cidade de Lisboa, tendo trabalhado com ele no Coliseu, quando se apresentou pela segunda vez ao público. Ao repórter da Illustração Portugueza (n.º 139), Hayashi informou de que era diplomado pelas escolas Bujitsudensukai e Nongakuko, de Osaka, que era professor de esgrima japonesa e que estava quase a concluir o curso de massagista. Hayashi foi conhecendo alguns admiradores portugueses destas práticas orientais de luta. A pouco e pouco, criou a sua “clientela”, se considerarmos que as práticas desportivas são um produto económico, social e cultural, submetidas, tal como outros produtos, à lógica da oferta e da procura. Acabaria por fixar-se em Lisboa e promoveu em 1908 um curso de jujutsu no Centro Nacional de Esgrima. Os portugueses Augusto de Almeida Vasconcellos, de 12 anos, e Jeronymo d’Almeida Vasconcellos, de 14 anos, foram dois dos seus primeiros alunos.
 

Depois da promoção dos primeiros cursos de jujutsu e das demonstrações públicas em Lisboa e no Porto, pouco se sabe sobre a evolução destas modalidades em território português, da criação de centros de prática e do recrutamento social dos praticantes. Só com os livros de Gonçalves (1914, 1936, 1941, 1942), é que ficamos a saber que este era discípulo de J. Hirano e que os quadros da PSP do Porto (da qual era instrutor) receberam formação sobre este sistema de luta. 
 

Relativamente a Hirano, sabe-se que deu lições de jujutsu em Lisboa e no Porto, tendo lutado com os homens mais fortes destas cidades. Apesar de emérito nadador, Hirano viria a morrer afogado na praia de Sta. Cruz, concelho de Torres Vedras. Como o seu cadáver nunca apareceu, Gonçalves (1941) especula que terá morrido de congestão. 

Referências:

Covões, R. (1940). O Cinqüentenario do Coliseu dos Recreios. Tipografia Freitas Brito.

García, C., Rosa, V., & Gutierrèz, M. (2010). Introducción de las Artes Marciales Asiáticas en Portugal. Revista Materiales para la Historia del Deporte VIII, 9-17.

Gonçalves, A. (1914). A Defesa na Rua: luta japonesa (golpes de «jiu-jitsu»). Edição de autor.

Gonçalves, A. (1936). A Defesa na Rua: luta japonesa (golpes de «jiu-jitsu»). Livraria Simões Lopes de Domingos Barata.

Gonçalves, A. (1942). Opiniões do meu amigo Fabrício: crónicas acêrca da Educação Física e dos Desportos. Livraria Fernando Machado.

Gonçalves, A. (1947[1941]). O Fraco Vence o Forte. Livraria Fernando Machado. Porto.

Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907.

Illustração Portugueza (n.º 139), de 19 de outubro de 1908.

Illustração Portugueza (n.º 230), de 18 de julho de 1910.

Os Sports Illustrados, de 22 de outubro de 1910.

Os Sports Illustrados, de 3 de dezembro de 1910.

Os Sports Illustrados, de 10 de dezembro de 1910.

Tiro e Sport, n.º 370, de 10 de janeiro de 1908.

Tiro e Sport, n.º 373, de 10 de fevereiro de 1908.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa