Espaço Universidade Esta coisa de ser treinador (artigo de José Augusto Santos, 17)
O meu filho, hoje aluno da casa que me formou e me realizou – FADEUP, entrevistou-me para um trabalho de Psicologia do Desporto. Como algumas ideias podem ser controversas e passíveis de crítica, resolvi apresentá-las neste observatório sobre as coisas do Desporto.
- O que é para si o atleta?
O conceito não é o que é, mas quem é. O atleta é aquele ser que procura, através do desporto, momentos de realização física que correspondem, normalmente, a momentos de elevação espiritual e emocional.
- Qual é o seu entendimento sobre a relação atleta-treinador?
Deve ser alicerçada na autenticidade. Aquilo que o treinador é como ser humano é aquilo que deve manifestar no contacto com os seus atletas. Pode, por vezes, cair em atitudes que não tenham o respaldo do “psicologicamente correto”, mas, mesmo correndo o risco de acentuar choques e dissensões, deverá expressar-se como é e não como os livros dizem que deve ser.
- Tem algum aforismo/máxima por que se orienta?
Só acredito em duas coisas – em Deus (que sou eu) e no treino. Todo o treinador tem algo de demiurgo. Pegar num jovem com 10 anos, frágil, repleto de sincinesias, titubeante, mas motivado e transformá-lo num campeão dez anos depois, faz com que um treinador, quase inconscientemente, ganhe uma dimensão divina.
- Qual é o seu objetivo enquanto treinador?
Pegar num atleta, levá-lo do ponto A ao ponto B, e que nesse ponto B, além da melhoria global no seu rendimento desportivo ele se encontre, mais feliz, realizado, satisfeito com o empenhamento, justificado no suor e sofrimento e com uma dimensão existencial mais livre e aberta. Senhor de uma segurança psicológica que lhe permita enfrentar as vicissitudes da vida com um sorriso nos lábios e o coração em festa. Marinheiros preparados para os mares revoltos e não para as águas calmas.
- Quais são, no seu entender, os valores que devem reger qualquer atleta?
Integridade e assunção do valor próprio e alheio. Esse é o ponto de partida para cada ser humano encontrar no desporto um campo de realização. Todos nascemos com um determinado potencial de realização. Até determinado momento não sabemos a dimensão das nossas potencialidades. Contudo, a competição repetida e sistemática permite-nos, dentro de uma razoável medida, definir os limites dessas potencialidades e transformá-las em capacidades. Temos de saber viver com elas e não arranjar desculpas para os nossos falhanços que não são mais que racionalizações com que tentamos justificar as nossas insuficiências. Daí a integridade de que falei no início. A nossa inteireza inquebrantável é feita de sucessos e insucessos. Aprendamos a conviver com ambos.
- O divertimento, quando trabalha com jovens, é algo que procura promover ao longo dos treinos?
Não. Treino é treino. É coisa séria e a sua preparação tem uma dimensão psicológica fundamental que radica na atenção e na focalização. Brincar no treino é reduzir o treino na sua importância formativa. Desde cedo, as crianças devem sentir que o treino é coisa séria.
- O que é para si o desenvolvimento positivo do atleta?
Consubstancia a transformação das suas potencialidades em capacidades. A matriz genética e epigenética que caracteriza cada ser humano deve ser realizada através do treino. Mais não se pode pedir, embora fatores “indefiníveis”, como aquilo que Nietzsche definia como “vontade de poder”, podem levar bem mais longe essa matriz inicial.
- Em que sentido o desporto contribui para o desenvolvimento pessoal, enquanto atleta, mas também como cidadão?
Pode contribuir ou não. O desporto não é uma atividade inócua. Está impregnado com os valores que norteiam uma dada sociedade. Tudo depende da consonância entre a axiologia e os fatores sociais que a permitem realizar. Por exemplo, a educação física e desportiva no III Reich permitia um optimum de desenvolvimento pessoal, permitindo a formação de cidadãos em consonância com os valores Pátrios. Só que a axiologia subjacente a essa sociedade tinha a segregação social e o repúdio dos não arianos como base estruturante. Cidadãos exemplares e plenamente desenvolvidos, mas subordinados a valores errados.
- De que forma vê o impacto do ambiente de competição/treino no atleta?
A competição é a cereja em cima do bolo da preparação desportiva. O atleta que tem no desporto uma fonte de prazer existencial e realização pessoal vê a competição como o momento “sagrado” em que tudo se justifica. É o momento da superior liberdade em que o atleta está sem enganos perante o que é. Como todos sabemos há quem se dê mal com a liberdade, pois esta pressupõe responsabilidade. Muitos desportistas negam, receiam e fogem da competição porque não têm coragem de se encontrar com o que são.
- Qual a sua interpretação sobre a transferência do desporto para o futuro do atleta? (como lida com o stress, situações fora do controlo, estratégias para lidar com a ansiedade, fracasso, motivação ou desistência)
Há desporto e desporto. O desporto como mera fonte de prazer, exaltado na sua função higiénica e catártica, dá ao homem muito. Contudo, o desporto que dá ao homem tudo é um desporto que mexe com os mecanismos de sobrevivência, que transforma o homem em predador de tempo e espaço e que lhe permite planar sobre os constrangimentos da existência. A resiliência física que o desporto comporta consubstancia uma dimensão mental e emocional que permite ao homem enfrentar todos os obstáculos que a vida lhe apresenta.
- Tem como preocupação esta transferência?
Não, de forma alguma. Sei de fonte segura que as exigências de uma prática desportiva séria e absorvente trazem no seu ventre, sem qualquer preocupação de as isolar, todas as transferências positivas e/ou negativas que lhe tenham correspondido. A ética que o desporto comporta, que a prática desportiva comporta, é uma ética de ação e não de reflexão. Esta só acontece a posteriori. Ser desportista é construir uma ética em cada treino. Normalmente essa ética passa para a vida extradesportiva, mas pode não passar.
- Existe semelhança entre enfrentar desafios/mudanças no desporto como na vida pessoal?
Têm uma base comum – o desafio, mas podem ter géneses e soluções diferenciadas, ou não. Para um desportista profissional os desafios do desporto são os desafios da vida tout court. A partir do desporto tudo se constrói. Mesmo quando terminam a prática desportiva a “sombra” desportiva fica a pairar, como uma auréola, sobre a sua cabeça. A vida pessoal pode ser saudavelmente contaminada pelos desafios/mudanças do desporto, ou não. A vida tem outras dimensões que o desporto-lazer e o desporto-profissão. Há uma coisa terrível que se denomina vida emocional, amor, convivialidade afetuosa ou chamem-lhe o que quiserem. Para essa dimensão o desporto pode contribuir muito negativamente. Seria fastidioso estar a desenvolver esse tema que foge do escopo deste inquérito.
- Qual a importância das competências psicológicas ao longo do treino?
As competências psicológicas não são um a priori. São moldadas no treino através do treino. São a componente mais importante para definir um campeão. Muitos desenvolvem a fisicidade até ao nível da excelência performativa. O campeão é aquele que envolve essa excelência com a capa inefável do controlo psicológico. Muitos soçobram porque não conseguem manobrar as exigências psicológicas que a competição comporta. Esse é um dos traços que mais me fascina no treino. Porque razão o mesmo treino potencia fisicamente todos por igual e tão diferentemente a nível psicológico? Qual a dimensão do Eu que não é tocada pelo efeito formativo do treino? Porque passei de 10 a 100 e só realizo 50? Mistérios!
- Quais as características/competências que um atleta deve ter para atingir o sucesso?
Temos, antes de tudo, de definir o nível de sucesso que estamos a falar. Entre ser o melhor da minha rua e o melhor do mundo há um problema de escala. Podem ambos estar empenhados, treinar todos os dias, levar o treino a sério, mas um é o campeão da rua dele e o outro é o campeão absoluto. Com as mesmas características psicológicas e emocionais um atleta é campeão nacional e outro campeão do mundo. Qual a diferença? Principalmente a diferença inscrita nos genes. Embora seja difícil, na imensa sinfonia dos genes, saber quais as músicas que fazem um atleta ser campeão do seu país e outro campeão do mundo, há uma forte determinação genética que não pode ser negligenciada. Um exemplo, se um atleta se caracteriza muscularmente por uma elevada percentagem de fibras Tipo I, nunca poderá ter sucesso internacional em modalidades de força/potência. Pode dar um jeito ao nível da sua rua, mas não pode ter sucesso ao mais elevado nível. As competências, outras, sobrevêm destas genésicas. Ou se tem, ou se não tem.
- Como tenta desenvolver estas competências? Há um esforço ativo para tal?
Quando se é um campeão genético o treino só se limita a transformar as potencialidades em capacidades. Tem de se ter o cuidado, como treinador, de não estragar aquilo que o atleta traz da lotaria dos genes. O trabalho e a motivação podem acrescentar muito, mas se o atleta não tiver sido bafejado com um dado perfil genético de pouco lhe serve o treino estuante. Isto que é verdade em relação a certas modalidades desportivas, e. g. remo, canoagem, atletismo, halterofilismo, já não é totalmente verdade para modalidades em que outras dimensões emergem como fundamentais, e.g. futebol, voleibol, etc. Contudo há limites. Uma equipa de basquetebol com uma média de alturas de 180 cm, por muitos predicados não físicos que evidencie nunca será campeã do mundo. Uma certa fisicidade, isto é, uma certa genética é necessária mesmo para modalidades desportivas em que a fisicidade pode não ser fundamental. Há modalidades desportivas em que a fisicidade antropométrica não é tão importante, e.g. hóquei em patins, futebol, dança no gelo a solo, ciclismo, canoagem, etc., mas a fisicidade condicional, isto é, o pleno desenvolvimento de uma condição física específica é condição sine qua non para a consecução da mais elevada performance.
- Que indicadores são os mais relevantes/fáceis de identificar para indicar o sucesso futuro do atleta?
Decorrente da resposta acima os indicadores podem variar. Para já vontade, focalização, resiliência mental. Dou um exemplo pessoal que melhor exemplifica a minha posição. Nos anos noventa do século passado fui treinador do Clube Náutico de Prado. Iniciei a minha função fazendo testes antropométricos e funcionais aos atletas. Perguntei a um atleta o nome e a idade pensando, em função da altura e desenvolvimento corporal, que teria no máximo 10 anos. Informou. Tenho 14 anos. De imediato me desinteressei dele e fiz-lhe os vários testes por obrigação. No final, propus ao presidente mandá-lo embora com as seguintes palavras: - Parece um anão e não vai dar canoísta. Responde-me o presidente: - Se quiseres mando-o embora pois és tu quem manda, mas ele está aí todos os dias e nunca falta a um treino. Acedi a deixá-lo ficar. Oito anos depois era vice-campeão do mundo de maratonas (o meu melhor resultado como treinador). Queria mandá-lo embora porque era pequeno, só que não tinha capacidade de medir a sua vontade. Logicamente que ele foi campeão nas maratonas, mas quando foi aos Jogos Olímpicos de Atlanta, onde só havia provas de velocidade, ficou logo de fora na primeira eliminatória com um tempo muito fraco. Ele era o melhor na velocidade em Portugal, mas pouco valia no areópago dos campeões de velocidade mundial. Portanto, o treino e a vontade foram suficientes para fazer dele vice-campeão na maratona, mas de nada lhe valeram o treino e a vontade nas provas de velocidade.
Em suma, há limites para a eficácia do treino e da vontade para algumas modalidades desportivas. Saber isso, já é uma grande qualidade de um treinador.
José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto