Cultura é Desporto / Desporto é Cultura (artigo de Gustavo Pires, 126)

Espaço Universidade Cultura é Desporto / Desporto é Cultura (artigo de Gustavo Pires, 126)

ESPAÇO UNIVERSIDADE05.10.202017:07

Nunca uma frase deve ter provocado tanta confusão no desporto nacional como a que titula um artigo saído no jornal Público (2020-10-02) da autoria do presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP). A frase título é a seguinte: “É possível uma cultura sem desporto, não é possível um desporto sem cultura”. Não se percebe nem aceita que um presidente de um Comité Olímpico Nacional (CON) se permita debitar sobre as relações entre jogo, desporto e cultura sem esclarecer minimamente o assunto, acabando por concluir que o seu discurso se trata de um “arrazoado”. De um arrazoado para justificar a sua opinião relativamente a uma notícia saída no jornal Le Monde (2020-09-17), um jornal liberal politicamente alinhado pela social democracia, que noticiou a posição de trinta intelectuais e figuras políticas francesas que,  no quadro atual da situação económica e social do país, se opõem à realização dos Jogos Olímpicos em Paris no ano de 2024 pois consideram ser tal evento uma “fonte de lixo e poluição que desrespeita o ideal do Olimpismo”. Os referidos intelectuais franceses chegam ao ponto de perguntar se o Estado francês “não tem nada melhor para fazer do que alinhar num “ideal olímpico” há muito corroído pelos negócios, pela corrupção, por um doping endémico e por uma economia criminosa (privada ou estatal)? E, levantando um dos problemas mais graves que hoje corrói o Espírito Olímpico afirmam: “Os Jogos Olímpicos de Paris, como todos os Jogos anteriores, beneficiam principalmente a “multinacional” olímpica que é o Comité Olímpico Internacional (COI), que se comporta exatamente como o GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) quando sequestram os códigos de trabalho, destroem o planeamento urbano e se apropriam dos recursos públicos à custa dos  contribuintes”. E continuam, os Jogos Olímpicos, “concebidos e organizados como uma vasta campanha de comunicação de marketing, mascarados pelos habituais slogans sobre os "valores do desporto", não têm outro propósito senão legitimar os interesses mercantis do COI e a sua colonização do espaço público”.

No seu artigo, o presidente do COP, com o choradinho do costume, sai em defesa dos Jogos Olímpicos e escreve: “Sem querer rebater os motivos, o certo é que, lá no fundo, está um antiquíssimo preconceito de não considerar o desporto um domínio da cultura, mas algo totalmente à margem das práticas sociais vulgarmente designadas como tal”. Ora, a este respeito, basta reparar o que se passou e continua a passar no Rio de Janeiro para se aquilatar quanto os Jogos Olímpicos no figurino atual são uma fonte de desperdício promotora de mais e cada vez maiores injustiças sociais que contradizem a letra e o espírito dos sete princípios fundamentais do Olimpismo. É neste quadro que deve ser entendida a posição dos intelectuais e políticos franceses e não num quadro de luta entre cultura e desporto ou desporto e cultura que só serve para justificar o injustificável e  cobrir a mais profunda mediocridade social, oportunismo político e ganância economicista que está a tomar conta do Movimento Olímpico (MO). E, diga-se em abono da posição dos referidos franceses que eles não estão sós na medida em que o que se está a passar em Itália e nos EUA anuncia uma nova era que vai, certamente, acabar com esse paradigma inaceitável que é o de muitos Comités Olímpicos Nacionais (CONs) por esse mundo fora, exorbitando daquilo que decorre da Carta Olímpica, considerarem-se uma espécie de  Estado dentro do próprio Estado, ao ponto de, para além de serem responsáveis por situações profundamente condenáveis, ainda se permitirem criticar as decisões dos Presidentes da República e as opções políticas dos Governos de países democráticos.

O discurso do presidente do COP utiliza uma argumentação de vitimização  completamente descabida desde logo porque procura atribuir, aos cerca de trinta  intelectuais franceses, “…um antiquíssimo preconceito de não considerar o desporto um domínio da cultura…”, como se isso fosse possível e como se, do texto dos intelectuais franceses fosse possível tirar tal conclusão.

Este tipo de discurso de vitimização tem raízes no esquerdismo republicano da velha educação física nacional saída da 1ª República, posteriormente reforçado no Estado Novo que se traduz no - coitadinho do professor de educação física que ganha pouco, mora longe e ninguém o compreende -. Trata-se de um discurso que formatou o pensamento de uma classe profissional ao longo do século passado que, salvo uma ou outra exceção, nunca foi verdadeiramente capaz de ver a floresta da universalidade do desporto para além do corporativismo medíocre da árvore de uma educação física esgotada no tempo. E, hoje, por motivos cuja explicação ultrapassa o presente texto, mas já por mim expostos noutros artigos e ensaios, o referido discurso “do coitadinho” é o grande responsável pelo endémico estado de subdesenvolvimento do desporto nacional. Nunca um verdadeiro  desportista, praticante, técnico ou dirigente, lhe passaria pela cabeça argumentar contra a posição dos intelectuais franceses a partir de um discurso de vitimização do desporto perante a cultura.  O verdadeiro homem do desporto, no seu íntimo, sabe que o desporto é um jogo que antecede, catalisa e consubstancia a cultura. Quer dizer, desporto é cultura e os intelectuais e políticos franceses sabem-no melhor do que ninguém, porque sabem que cultura é desporto. Tanto a cultura quanto o desporto são jogo que, enquanto competição que é, como refere Hans-George Gadamer na Verdade e Método,  “é o fio condutor da explicação ontológica”. Tal como para Friedrich Schiller na Educação Estética do Homem “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”. Nesta conformidade, porque, em matéria de desporto e da sua universalidade instituída por Pierre de Coubertin, não é possível diferenciar do próprio conceito de jogo o comportamento do jogador, o desporto é, hoje, um elemento universal em todas as culturas. Nenhuma outra atividade humana pode reivindicar tal categoria histórico-epistemológica. Por isso, não existem quaisquer complexos de inferioridade ou superioridade entre desporto e cultura e cultura e desporto. A existirem, só estão na mediocridade que, tanto no desporto quanto na cultura, tomou conta das Políticas Públicas em muitos países por esse mundo fora.

Deixemo-nos de lamechices e de subalternismos culturais. Hoje, o desporto é, não só, um espaço de cultura erudita que, há muito, assentou arraiais nas universidades e centros de investigação e cultura por esse mundo fora, mas também é um espaço prático e teórico de cultura popular que determina e reflete atitudes, comportamentos e padrões sociais que se afirmam à escala do Planeta. Assim, as “arrazoadas” preocupações desportivo-culturais do presidente do COP não têm qualquer razão de ser, direi mesmo que, na minha opinião, relativamente aos intelectuais e políticos franceses, não passam de uma hipotética  teoria da conspiração sem qualquer credibilidade.

“It's the economy, stupid” é uma frase cunhada em 1992 por James Carville conselheiro estratégico de Bill Clinton que o levou à vitória presidencial sobre George H. W. Bush. É o que se passa com a posição dos intelectuais e políticos franceses. A sua posição nada tem a ver contra o desporto, nem nada tem a ver com a ostracização do desporto da cultura. A sua posição tem a ver com a economia sobretudo porque, desde que o antigo presidente do COI António Samaranch proferiu a frase “yes to commercialization”,  os custos da realização dos Jogos Olímpicos, para além de todos os outros inconvenientes, dispararam para valores absolutamente obscenos. Pequim (2008) custou 32 mil milhões de euros. Londres (2012) custou 11 mil milhões de euros. Rio (2016) custou 33 mil milhões de euros. Tóquio (2020) vai acabar por custar cerca de 25 mil milhões de euros. Em conformidade, os intelectuais franceses limitaram-se a afirmar que o País, para além de tudo o mais, com os coletes amarelos na rua a reivindicarem melhores condições de vida,  não está em condições de despender cerca de 7 mil milhões de euros a fim de receber os Jogos da XXXIII Olimpíada que, depois das contas feitas, vão, certamente, ser multiplicados por duas ou três vezes.

A questão, ao contrário daquilo que afirma o presidente do COP, não tem nada a ver com qualquer preconceito de ordem cultural relativamente ao desporto, tem a ver com uma simples posição de racionalidade económica que passa por dizer que os Jogos Olímpicos no figurino desportivo, económico e financeiro atual, são, simplesmente, obscenos. E esta obscenidade replica-se nos vários países do Mundo em que os programas de preparação olímpica acabam por consumir milhões à custa do prejuízo da prática desportiva da generalidade das populações sobretudo das mais jovens. Um CON de um país com uma dívida pública de mais de 120% do PIB e défices crónicos das contas públicas há dezenas de anos, que, entre atletas, técnicos, dirigentes e convidados leva uma Missão aos Jogos Olímpicos de mais de cem pessoas, gasta cerca de vinte milhões de euros para trazer uma medalha que podia ser nenhuma num país com taxas de prática desportiva miseráveis, não tem nada a ver com o Espírito Olímpico preconizado por Pierre de Coubertin quando instituiu o MO moderno em finais do século XIX, como, também, nada tem a ver com o Espírito Olímpico preconizado na Carta Olímpica.

O presidente do COP, termina o seu artigo socorrendo-se de Pierre de Coubertin arguindo que que “revisitar uma parte do seu legado ajudaria a ultrapassar estes antagonismos cultura versus desporto”. Não diz que parte de Coubertin é que pretende revisitar, todavia, seja qual ela for, e esteja ele onde estiver, perante o atual figurino dos Jogos Olímpicos, Coubertin, que sempre teve uma questão nunca resolvida com os seus concidadãos, desta vez, estará, certamente, de acordo com a posição dos intelectuais e políticos franceses. Porque, a questão nada tem a ver com cultura, tem tudo a ver com a irracionalidade económica e a irresponsabilidade social que tomou conta do MO moderno.

Gustavo Pires é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana