As verdadeiras razões e responsáveis pela irrelevância do desporto em Portugal (artigo de António José Silva, 15)

Espaço Universidade As verdadeiras razões e responsáveis pela irrelevância do desporto em Portugal (artigo de António José Silva, 15)

ESPAÇO UNIVERSIDADE27.08.202017:01

Muito se tem dito e escrito, sobre a falta do apoio do XXII governo constitucional ao desporto, cuja maior visibilidade decorreu com a COVID-19. Infelizmente todos percebemos, se é que dúvidas havia, que o desporto não é uma prioridade no campeonato das políticas sociais.

Este facto começou a evidenciar-se aquando do alarme social, devido à pandemia, e as várias declarações do estado de emergência por parte do governo (Decreto n.º 14-A/2020, a 18 março de 2020, renovado a 02/04/2020 e a 17/04/2020), até ao anúncio público do adiamento dos jogos olímpicos/paralímpicos (30 março de 2020); agravando-se com a resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de abril, que aprovou uma estratégia gradual de levantamento de medidas de confinamento, e posteriores atualizações, e atingiu o auge com a desconsideração total a que o desporto foi vetado, traduzindo-se pelo abandono completo de um setor em crise profunda.

A gota de água que fez transbordar o copo foi a apresentação do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) pelo governo, no qual o Desporto não foi contemplado e a apresentação posterior da visão Estratégica para o Plano de Recuperação (VEPR), com os seus 10 eixos estratégicos e onde uma vez mais o desporto, a par das suas ramificações, não existe enquanto setor.

Estes factos levaram inclusive a uma iniciativa inédita do movimento associativo desportivo em Portugal (organizações cúpula e federações desportivas), que se reuniram e propuseram medidas, aprovadas unanimemente, sob a forma de uma moção apresentada ao Governo e órgãos de soberania para tentar minimizar o efeito da crise pandémica, evitando o colapso das organizações desportivas e estimulando a recuperação do setor, em plano de igualdade com os demais, nomeadamente os mais vulneráveis, ao impacto da crise.

Mas a irrelevância do desporto nacional, contrariamente ao que sucede com os restantes países europeus, devidamente concretizado no planeamento estratégico da união europeia, não é de hoje. A pandemia simplesmente a tornou visível.

Existem, na minha ótica, quatro ordens de razões justificativas: a irrelevância sociopolítica do desporto (imputável ao desporto) (1); a irrelevância do desporto para o estado, com base em paradigmas sociais maniqueístas e desajustados (2); a irrelevância dos interlocutores políticos (Ministério da Educação com Tutela do Desporto, Secretaria Estado da Juventude e Desporto e Instituto Português Desporto e Juventude) (3); e a irrelevância dos interlocutores do movimento associativo, quer de cúpula, quer das federações desportivas (4).

A irrelevância sociopolítica do desporto não é de agora, nem deste governo específico. É um problema de estado, transversal aos governos constitucionais, e da generalidade dos partidos políticos, dentro e fora do espectro da governação. Basta aliás fazer um exercício simples e consultar os programas políticos para a XXII legislatura (2019-2023), assim como o programa de governo para constatar isso mesmo. Esta análise já foi feita em artigo prévio e pode ser consultado em (https://www.abola.pt/Nnh/Noticias/Ver/812451).

A irrelevância do desporto para o sistema político-partidário, é agudizada pela anacrónica e reiterada inoperância e a descoordenação dos agentes desportivos em fazer passar a mensagem da importância do desporto em determinados setores sociais.

Baseado nestas constatações podemos inferir que, além de outros, uma das principais razões desta secundarização do desporto, assim como de outras práticas sociais, inclusive a cultura, e pessoas (idosos) no nosso sistema político-partidário e governativo está na visão maniqueísta, enraizada numa tradição secular e arcaica, que os nossos políticos possuem da sociedade.

Isto está, aliás, bem patente quer no PEES, quer na VEPR, cuja visão desintegrada do assistencialismo aparece baseada na necessidade de ao estado caber a responsabilidade de prover a salvaguarda das condições materiais da existência humana, fazendo valer a máxima de que se vive para trabalhar e não se trabalha para viver. É de facto evidente a falta de integração nesta equação de outras variáveis determinantes nas sociedades atuais.

Quando a sobrevivência básica é dada como garantida, como acontece na generalidade dos países desenvolvidos, abrem-se outras prioridades, não menos importantes, no quadro axiológico dos valores: a luta contra a desagregação, a indiferença e a inautenticidade e onde a qualidade de vida, o bem-estar, o lazer e o ócio produtivo assumem importância vital.

O Exercício físico e a prática desportiva é, nesta conceção desumanizada da sociedade, considerado um ócio improdutivo e um lazer subversivo, num tempo político atual (que já perdura há muito), pelos adventores da economia de mercado (integrada facilmente no discurso e prática política), já que assumem as pausas no ritmo produtivo como momentos de desperdício e algo que pode comprometer a coesão económica nacional, mesmo que os indicadores da conta satélite do desporto demonstrem o inverso, e desta forma a coesão social e territorial.

É por isso que a jusante desta conceção da sociedade, há a necessidade de domesticar o tempo livre, o exercício e a prática desportiva através da fusão da doutrina da salvação da alma e da carne numa só missão: a religião do trabalho, invertendo na totalidade os princípios mais básicos e humanistas em termos civilizacionais; a economia rege não apenas a reprodução material das sociedades, mas também a própria condição do ser. O Homem deveria estar no centro do processo, e não o dinheiro.

Os prejuízos desta visão provocaram problemas que são mais evidentes quando a conjuntura a isso é propícia (como os que decorrem da pandemia), cujos fundamentos estruturais são os causadores primários dos problemas, pela falta de investimentos qualitativos e quantitativos na educação, na saúde e no desporto, com consequências na desvalorização de funções sociais relevantes e a desconsideração das desigualdades sociais, e de outros fatores de exclusão (como a deficiência), historicamente construídas.

Esta visão é transversal, em termos sociais, a todas as funções e pessoas tidas como irrelevantes!

Ainda recentemente se veio a constatar que o Plano Nacional para a Saúde das Pessoas Idosas ainda não saiu do papel e, por isso, as três estratégias de intervenção plasmadas no documento — promover um envelhecimento ativo, adequar os cuidados às necessidades das pessoas idosas, promover o desenvolvimento de ambientes capacitadores — também não. O plano é de 2006!

Depois acontece a tragédia com os lares como em Reguengos! Não é conjuntural! É estrutural!

Esquecem-se que o lazer, o exercício e a prática desportiva (não na ótica profissional e/ou comercial, mas também) pode ser um veículo de educação/emancipação, podendo contribuir para soluções mais abrangentes em termos da vida social como um todo, abrindo espaços de liberdade, de pensamento e de criação, aprofundando a difícil arte da esperança elaborada num horizonte que não é simplesmente individual, mas ligando-nos ao nosso elemento primordial, a comunidade dos nós.

E é esta visão maniqueísta da sociedade que gera desqualificação, opressão e subserviência crónicas, plasmada aliás em dois aspetos centrais. Por um lado, na desqualificação assumida no enquadramento do desporto, enquanto área de atuação política, na organização e funcionamento dos sucessivos governos constitucionais, a bem dizer, limitando-se simplesmente a adotar a estrutura compatível com o cumprimento das prioridades enunciadas nos programas eleitorais e de governo, isto é, um conjunto vazio de nada.

O facto indesmentível é que, desde sempre, o desporto nunca foi uma área autónoma nos sucessivos governos pós 25 de abril. Todavia tem vindo a piorar a sua relevância ao sair da presidência do conselho de ministros, tendo sido arremetido para a tutela da educação, com uma miríade de problemas, onde a subordinação é caracterizadora da sua irrelevância, num setor que por natureza é transversal a toda a intervenção política (educação, saúde, turismo, economia, desenvolvimento regional, etc.).

Este facto releva também para a inexistência de verbas do orçamento de estado para o investimento, oprimindo o seu desenvolvimento. A dependência das receitas dos Jogos sociais, além de aleatória, não permite a discussão de opções político-estratégicas em sede parlamentar, como na discussão do orçamento de estado anual e eventuais suplementares e retificativos.

Honra seja feita, apesar desta visão social, à cultura que, não obstante, consegue um reforço

suplementar de financiamento para o setor de 70 milhões de euros (o dobro do que o Desporto tem em termos normais e regulares por ano) graças à coordenação de um setor cultural e à força política dos seus interlocutores.

E é este exatamente o segundo aspeto central: a irrelevância e subserviência que deve ser acometida, também, a todos os cargos de nomeação política e seus gabinetes, nomeadamente, ministro com tutela, secretário de estado do desporto, presidente do IPDJ, porque das duas uma: ou concordam com esta visão maniqueísta da sociedade e consequente irrelevância do desporto e, desta forma, não servem para “servir” o desporto, porque não representam a afirmação de um setor que lhes cabia assumir, defender e projetar ou;  não concordam com a política mas aceitam ser coniventes, por outros interesses para além do de servir a causa pública, tornando-os desnecessários na sua função sociopolítica.

O mínimo que seria esperado era que tornassem público, ME com a tutela do desporto, o SEJD e o Presidente do IPDJ, qual é o seu pensamento estratégico, coordenado ou não, para o desporto e a forma de o concretizar. Pelo menos desta forma, por uma questão de prestação de contas, ficaríamos a saber se a irrelevância se deve à falta de estratégia política e/ou à falta de relevância dos políticos em sede enquadramento orgânico.

Por último, a irrelevância dos interlocutores do movimento associativo, especialmente das organizações cúpula e das federações desportivas.

A generalidade dos representantes das federações desportivas, nos quais me incluo, seja pelo síndrome da mão estendida, esperando que a benevolência, pela tolerância da inação do governo no desporto (que acaba por ser uma espécie de filantropia que acaba por se destruir a si mesma) e fundamentalmente porque dependem do financiamento dos contratos programas de estado para as atividades das suas organizações, se traduza em mais umas migalhas ou, seja pela expetativa das boas aventuranças e palmadas nas costas das lideranças políticas, assumem uma posição de retração, acrítica, quase sempre inorgânica e desorganizada que redunda numa surdez angustiante das suas vozes.

Como diria Montesquieu, os estereótipos são sempre alimentados pela ignorância. E a ignorância é a mãe da tradição. Para romper com este ciclo vicioso e viciado de estereótipos e visões arcaicas só resta uma coisa ao desporto Português, entregar as chaves do desporto e das organizações desportivas ao governo.

Pode ser que assim, do alto da sua magnificência e eloquência política, façam cumprir as funções sociais delegadas pela constituição, que o desporto, via clubes, associações e federações, prestam ao País.

Talvez só aí percebam. Talvez.

António José Silva 
Prof. Catedrático Departamento Ciências Desporto, Exercício e Saúde da UTAD; Membro do Conselho Nacional Educação (CNE); Presidente da Federação Portuguesa de Natação.