Espaço Universidade O Martelo de Nietzsche X (artigo de Gustavo Pires, 122)
1. Embora haja quem, ao cabo de uma vida de oportunismos político-partidários, pretenda transformar as políticas públicas em matéria de desporto numa atividade ideologicamente inerte, o que é facto é que, tudo indica que a dimensão política do desporto vai assumir uma preponderância como nunca chegou a ter ao tempo da guerra fria quando os EUA e a URSS se digladiavam nos Jogos Olímpicos a fim de provarem que o respetivo modelo sociopolítico era o mais virtuoso. Só que, desta vez, o protagonista é a República Popular da China (RPC) (China) que ainda tem por esse mundo fora alguns filhotes de Mao Tsé-Tung que, tristemente, sobraram dos anos setenta do século passado quando, de acordo com o ideário comunista chinês, reduziram o desporto ao pior que o espírito humano pode apresentar, a corrosão do carácter.
2. O que hoje se passa no Mundo relativamente à China tem as suas origens numa cultura de prepotência e da mais completa ausência de um qualquer sentido ético-moral que vem diretamente do tempo em que o primeiro ministro Shou Enlai dominava e corrompia o desporto chinês cujo desígnio era estar ao serviço da ditadura imperialista chinesa e de Mao Tsé-Tung. Entretanto, o comunismo de miséria dos anos sessenta e setenta, a partir de finais da década, com a teoria do gato branco gato preto de Deng Xiaoping, evoluiu para o regime comuno-capitalista que hoje conhecemos que, como se viu nos Jogos Olímpicos de Pequim (2008), com o seu poder financeiro, pôs o mundo livre cego, surdo e mudo relativamente aos direito humanos e, tudo indica, a prazo, vai continuar a fazê-lo mas, certamente, à conta do poder militar. E ninguém pode dizer que não estava avisado. No interior dos equipamentos dos atletas da Missão chinesa que participaram nos JO de Pequim (2008) podia ler-se a frase transcrita do hino nacional da RPC: “levantem-se e marchem”. Este era o desígnio nacional e a Missão chinesa ficou em primeiro lugar do ranking das medalhas olímpicas à frente dos próprios USA.
3. A partir do novo século, as células adormecidas de Pequim, ideologicamente plantadas nos anos setenta nos mais diversos países do mundo, começaram a ser acordadas a fim de, do desporto à economia, desencadearem uma nova ordem política mundial desta feita amarela. A partir de então, desde afirmar o apolitismo do desporto enquanto o consideram um desígnio nacional, até à venda ao preço da uva mijona de recursos estratégicos às empresas estatais chinesas, tudo tem vindo a acontecer com o apoio dos habituais corruptos úteis que, em cada país, se têm encarregado de destruir, para além do desporto e a economia, as respetivas identidades nacionais. No desporto destroem a identidade das seleções nacionais através de naturalizações de aviário incluindo de chineses e, na economia destroem o tecido empresarial dos países ao ponto de já se estar numa Nova Rota da Seda, desta feita de sentido contrário.
4. Quando falamos de corruptos úteis, neste quadro pandémico em que as economias se encontram de rastos, quando se fizerem as contas, os países vão ser confrontados com quebras nos respetivos PIBs superiores a dois dígitos. Em cenários deste tipo, é confrangedor ver dirigentes desportivos, completamente alienados, a circularem pelas capelinhas políticas a exigir a abertura do desporto formal quando se sabe que, a acontecer tal desvario, os países acabam por pagar muito caro tal irresponsabilidade. Sobretudo países que vivem da economia do turismo uma vez que se fecham os corredores aéreos para destinos incapazes de controlar a progressão da pandemia. Esta gente, completamente descerebrada, parece não perceber que se vive uma tragédia à escala mundial em que, para além de mais de 350 mil mortes, está ainda a saldar-se em muitos milhões de dólares de prejuízo, milhões de desempregados, a saúde da generalidade dos países em colapso e os sistemas educativos completamente fechados o que prejudica sobretudo as populações económica e culturalmente mais débeis. E tudo isto a troco de uns golos e de uns penalties mais ou menos mal marcados ou de umas quantas marcas desportivas obtidas em ambientes vazios de pessoas, de emoções, de bom senso e de inteligência. Acresce que a irracionalidade que leva a abrir o desporto formal, como alguns dirigentes por esse mundo fora já estão a denunciar, só faz com que a China que tem tirado vantagens económicas da pandemia o continue a fazer.
5. Se do ponto de vista externo a estratégia de Pequim passa por negar as suas responsabilidades e tirar partido económico das dificuldades dos países, do ponto de vista interno, passa por aproveitar a situação de desorientação mundial a fim de afirmar o seu poder autocrático sobre Hong-Kong uma vez que, em 1997, a administração colonial do Reino Unido foi entregue à China passando a vigorar um regime político especial de características híbridas, quer dizer, um país dois sistemas. Entretanto, em Março de 2019, em virtude da China ter pretendido intervir no sistema jurídico especial de Hong Kong, foram desencadeadas pela população manifestações de repudio que acabaram replicadas em várias cidades do mundo com comunidade de cidadãos de Hong Kong e ganhar visibilidade à escala mundial. A prepotência da China sobre Hong Kong agravou-se com o surto pandémico surgido em Janeiro de 2020. Em consequência, enquanto a generalidade dos países democráticos contabilizava infetados e mortos e tentava salvaguardar o futuro, o regime comuno-capitalista chinês aproveitou para afirmar a sua posição de força em Hong Kong e, a 30 de Junho de 2020, aprovou uma controversa lei de segurança nacional que permitirá às autoridades chinesas combater o que consideram ser atividades subversivas. E Londres, a 2 de Julho de 2020, reagiu dispondo-se a conceder a cidadania do Reino Unido aos habitantes da sua ex-colónia que o desejassem. Ao fazê-lo, pode ter aberto a caixa de Pandora que talvez venha a ser a única solução para o mundo perceber que, em matéria de desenvolvimento do desporto, os mais diversos países estão a viver sob o signo do maoismo dos anos setenta protagonizado por gente sem escrúpulos que está a destruir o desporto democrático em favor de um desporto oligárquico de características protofascistas.
6. O Comité Olímpico de Hong Kong (atualmente designado Sports Federation & Olympic Committee of Hong Kong) foi fundado em 1950 e reconhecido pelo Comité Olímpico Internacional em 1952 ao tempo em que esta instituição era liderada pelo sueco Sigfrid Edström. Desde então, passou a participar nos Jogos das Olimpíadas (de Verão) e, a partir de 2002, nos Jogos Olímpicos de Inverno. Ora, perante o que está a acontecer somos levados a considerar se a China não será tentada a regressar ao passado, quando, devido à situação de Taiwan (Formosa), a 19 de Agosto de 1958, anunciou retirar-se do Movimento Olímpico. Ao tempo, a atitude da RPC deixou o COI em estado de choque ao ponto de ter acusado a China de optar por um “isolamento esplêndido”.
7. Entretanto, a lógica diplomática da posição da China relativamente a Hong Kong, alterou-se completamente uma vez que a existência de um Comité Olímpico de Hong Kong deixou de fazer qualquer sentido para as autoridades chinesas, antes pelo contrário. Quer dizer, as autoridades chinesas não terão qualquer interesse na existência de uma Missão Olímpica de Hong Kong aos Jogos Olímpicos de Tóquio adiados para 2021. Por outro lado, países como o RU, os EUA, o Japão e a generalidade dos Países Ocidentais terão todo o interesse numa situação de “confronto frio” com a China defendendo a presença de uma Missão Olímpica de Hong Kong nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021 caso se venham a realizar.
8. Hoje, os mais cândidos dirigentes desportivos por esse mundo fora, daqueles que, acima de todas as coisas, vivem para respeitar o olímpico “dress code”, estão a reafirmar a linha dura de Mao Tsé-Tung ao tempo em que aquele que viria a ser o timoneiro da Grande Marcha escreveu o livro A Study of Physical Education” (1917) onde expressou algumas ideias que, posteriormente, viriam a consubstanciar essa joia do fascismo internacional que foi o Livro Vermelho. Dizia o grande timoneiro: “A educação física não só harmoniza as emoções como também fortalece a vontade. (…) O principal desígnio da educação física é o heroísmo militar. Os objetos do heroísmo militar como a coragem, desafio, audácia e perseverança são todos questões de vontade. (…) As corridas de longa distância são particularmente boas para o treino da perseverança.” Ora bem, é certamente nestas palavras que os maoistas dos anos setenta do século passado, hoje, encontram inspiração não só para calar as barbaridades do regime chinês bem como para colocar, através de processos perfeitamente desumanos, o desporto de alto rendimento ao serviço das oligarquias que governam os países em prejuízo da generalização da prática desportiva, na base de uma relação virtuosa entre a base e o topo da pirâmide de desenvolvimento.
9. Países cuja Situação Desportiva apresenta Taxas de Descarte de praticantes ainda adolescentes na ordem dos 90% e as Federações Desportivas, ao serviço dos olímpicos desígnios do Estado, criam modelos de recrutamento de novos praticantes por especialidade desportiva a partir dos seis anos de idade, do ponto de vista ético-ideológico, estão a cometer um atentado contra a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Para além dos oficiais discursos de crocodilo trata-se de modelos desportivos protofascistas que seguem na linha das barbaridades pedagógicas perpetradas na China comuno-capitalista em que, por meio do desporto, as crianças com Potencial Olímpico não passam de “carne para canhão, quer dizer, de meros instrumentos ao serviço do Estado chinês. Hoje, nos mais diversos países do Mundo, sem qualquer pudor e perante a mais confrangedora ignorância de conveniência dos governantes, estão a adotar-se modelos antidemocráticos de desenvolvimento do desporto do tipo “meia bola e força” que só servem para alimentar os cada vez mais alienantes espetáculos desportivos no mais completo desprezo pela promoção da prática desportiva ao longo da vida das pessoas.
10. Uma política de educação desportiva não pode estar sujeita a processos de tomada de decisão condicionados por ambições políticas e no mais perfeito estado de desprezo social pelas necessidades e anseios das populações. Conforme refere o documento “Quality Physical Edication Guidelines for Policy-Makers (2015) produzido pela UNESCO em parceria com as Comissão Europeia (CE); Conselho Internacional de Ciências do Desporto e Educação Física (ICSSPE); Comité Olímpico Internacional (COI); Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); Gabinete das Nações Unidas do Desporto para o Desenvolvimento e Paz (UNOSDP); e Organização Mundial de Saúde (OMS), devem ser elaborados programas de educação física e desporto escolar de qualidade para uma faixa etária que vai dos primeiros anos até ao final do ensino secundário. Tais programas devem começar nas primeiras idades por desenvolver as mais diversas atividades motoras que permitam estruturar ideias, expressar sentimentos, enriquecer a compreensão, de acordo com o grupo etário dos alunos, género e aspirações.
Devem fazê-lo, de acordo com a evolução etária, por meio de jogos de cooperação, pré-competitivos e de competição que colocam os alunos em situações que os levem a compreender e a assimilar, valores, critérios, convenções, níveis de desempenho e fair play numa dialética entre atividades individuais e coletivas. As autoridades políticas dos países, têm de pôr cobro a processos ético-morais mais do que duvidosos protagonizados por dirigentes desportivos obcecados pelo rendimento desportivo de crianças com grande potencial económico e, em alternativa, desencadearem políticas públicas que tenham em consideração a Declaração Universal dos Direitos das Crianças: (1.º) A criança gozará dos direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação; (2º) A criança gozará de uma proteção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança; (3º) A criança tem direito desde o nascimento a um nome e a uma nacionalidade; (4º) A criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e cuidados médicos; (5º) A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados especiais requeridos pela sua particular condição; (6º)
A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo em circunstâncias excecionais, a criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas têm o dever de cuidar especialmente das crianças sem família e das que careçam de meios de subsistência. Para a manutenção dos filhos de famílias numerosas é conveniente a atribuição de subsídios estatais ou outra assistência; (7º) A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade. O interesse superior da criança deve ser o princípio diretivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em
primeiro lugar, aos seus pais. A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a atividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação; a sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes direitos; (8º) A criança deve, em todas as circunstâncias, ser das primeiras a beneficiar de proteção e socorro; (9.º) A criança deve ser protegida contra todas as formas de abandono, crueldade e exploração,e não deverá ser objeto de qualquer tipo de tráfico. A criança não deverá ser admitida ao emprego antes de uma idade mínima adequada, e em caso algum será permitido que se dedique a uma ocupação ou emprego que possa prejudicar a sua saúde e impedir o seu desenvolvimento físico, mental e moral; 10º) A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Deve ser educada num espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universal, e com plena consciência de que deve devotar as suas energias e aptidões ao serviço dos seus semelhantes.