Espaço Universidade Um Natal… na Prisão!… (artigo de José Neto, 94)
Foi em finais da década de 70 que, por uma conjugação feliz de várias circunstâncias, tomei contacto com o meio prisional. O contexto dessa indelével experiência nem sequer me é fácil descrevê-lo, tal era o inusitado e o dramático das situações com que me deparei.
Os reclusos, de olhar vítreo e abismado, vagueavam, quais autómatos, pelo espaço de todos, que parecia ser de ninguém, dando a dolorosa impressão de estarem por ali apenas à espera de nada – uma vida, enfim, oca e destituída de qualquer sentido.
Senti imediatamente que o Desporto, na sequência, aliás do convite que pelo diretor, Dr. Miranda Pereira, me fora dirigido, poderia, de facto, vir a preencher, a seu modo, um pouco desse vazio em que se afogavam.
Senti-me deveras entusiasmado de vir a poder constituir-me, através da prática desportiva em clima de privação de liberdade, um privilegiado agente de um renovado sentido de vidas esvaídas e mergulhadas na apatia continuada. E foi como que atraído pela devastadora impressão de desnorte e vazio que senti na alma daqueles rapazes e alguns homens feitos, que, orgulhoso e entusiasmado, me lancei à nobre missão de, através do Desporto, dar vida a vidas que da vida pareciam ter descrido.
Foi neste pressuposto que procurei dar corpo a uma das maiores experiências da minha vida profissional, convocando para uma prática imprevista de Desporto, todos os reclusos que porventura já se tinham amolecido na espera sem esquina, de um futuro sem sol.
Após um levantamento da situação, da introdução técnico-pedagógica das várias disciplinas, da competição entre equipas do estabelecimento prisional e sucessivamente alargado ao exterior que marquei com suor e afetos o meu contato com esse “mundo novo”.
Construir equipas de trabalho em voluntariado, transformando “zonas abandonadas” em espaços desportivos, com manifestações de redobrado entusiasmo, queimando lixos, matraqueando picaretas em contraste com as correrias dos carrinhos de mão, numa chiadeira infernal, via-se a crescer um ridente símbolo de esperança ocupacional.
Aquela gente, tão avaros do nada fazer, começaram a dar as primeiras imagens da sua capacidade de trabalho, de dedicação e, porque não dizê-lo de amor, preparando assim um novo desenho de uma esperança imprevistamente renascida, começando a desafiar os incrédulos do homem, que, embora recluso, também é portador de valores que uma sociedade tipo, ora lhes reconhece, ora lhes recusa, sociedade para alguns de interesse e habilidades, mas para outros de engano e de ilusão.
Foi, como referi, durante uma parte substancial da minha vida, que construí pela prática desportiva uma dinâmica onde imperou empatia pela promoção e desenvolvimento de iniciativa, da capacidade organizadora, autonomia e solidariedade numa autêntica caminhada de gratificante humanização entre a população reclusa.
A dinâmica instituída pelo jogo (adaptativo ou classicamente traduzido numa determinada modalidade), sempre que possível arbitrado alternadamente pelos próprios reclusos, constituiu-se num sentimento de partilha e de que tinha valido a pena. A aquisição do hábito de respeitar a regra da sociedade, entretanto violada, mediado pelo exercício lúdico-agonístico do cumprimento da normatividade da competição pelo jogo – eis o aspeto mais relevante. Para além do que ficou a constar, o melhor comportamento da população reclusa, recaía naqueles que faziam da prática desportiva a sua normal e periódica ocupação semanal.
Uma nota de gratidão pela tarefa desenvolvida ficou humildemente expressa num louvor atribuído pelo então ministro da Justiça, Dr Menéres Pimentel e a regularização oficial e normativa da disciplina do Desporto nos estabelecimentos prisionais.
…Passados uns tempos, resolvi passar com eles uma tarde em vésperas de Natal. Nesse dia, a chuva acompanhada pelo vento e nevoeiro intenso, tornava ainda mais fria a visita.
Cheguei, quando algumas visitas se abeiravam do portão de saída. Notei em quase todos os rostos meios descobertos algumas lágrimas e também nas mãos de crianças, pequenos embrulhos cobertos por fitas reluzentes duma só cor.
Uma saudação com resposta quase inaudível e lá me desloquei para o primeiro pátio, aguardando o simpático atendimento do guarda de serviço, que me levou ao segundo portão de acesso ao primeiro corredor que fazia ligação com novo portão e, este, a um outro espaço aberto por onde circulavam alguns vultos encobertos pelo triste regresso ao espaço bem próximo entre o refeitório e as celas.
Eram 18 horas duma tarde que se fazia noite e já alinhados, centenas de pratos em mesas corridas com canecas de alumínio, e se iam sentando um recluso e outro e mais outro… e tantos outros. Tantos e tanto silêncio!…
Não faltavam as batatas, o bacalhau, a hortaliça e demais iguarias… mas notava-se faltarem as forças para fazer do apetite vontade de comer… que de forma serena e pautada pelo recato se processava.
No momento da despedida, olhos fitados no silêncio da amargura, iam-me acenando o que a boca impedia resposta e, entre alguns abraços, toquei-lhes o rosto e, não tive sequer forças para lhes desejar um Bom Natal… apenas aquele olhar com o desejo para lhes dizer que num outro Natal, outro apetite de consoada fosse acontecimento de vida.
Entretanto alguém me chama. Volto-me e dois reclusos se me dirigem trazendo entre mãos um cesto feito de vime e algumas peças de barro por eles moldadas, cosidas e pintadas – eram nada mais, nada menos do que uma ovelhinha, o Menino Jesus e um pastor!…
Nesse momento, senti fazer-se Natal!…
Todos os anos procuro realizar uma atividade socio desportiva, acedendo ao convite dos responsáveis dos estabelecimentos Prisionais de Paços de Ferreira e Vale de Sousa.
Uma oportunidade singular para levar os meus alunos de Mestrado em Treino Desportivo do Instituto Universitário da Maia a perceber um profundo desejo para o reencontro com a liberdade, entretanto perdida, permanecendo 3 a 4 horas com as vivências bem próximos das grades.
Os altos muros que circundam os pátios, as janelas e as paredes das celas; aquele ruído permanente do fechar e abrir dos gradões e portas das celas, as constantes chamadas através da instalação sonora e demais ecos dos sons dos aparelhos de rádio; o intenso odor a lixivia, creolina e outros produtos de limpeza e o combate aos mesmos com o uso exagerado de perfumes, leva a que permaneça nas longas memórias do passado quem um dia passou para o outro lado.
O uso das fardas impostas à condição de recluso, a identificação através do número, algum desleixo da apresentação e descuido com a higiene e a noção de perda de privacidade, conduz ao confronto com o mundo da liberdade.
É assim que desta aula se marca muitas vezes a história do futuro de quem pretende entrar na vida e melhor se preparar por a merecer.
Na liberdade que é um bem… a maldade um veneno… a recordação um perfume … a memória, um privilégio (Seara, 2016), gostaria muito de desejar a todos os queridos amigos leitores um FELIZ NATAL e que a manifestação dum Deus que se fez Menino, há mais de 2 mil anos, volte mais uma vez a renascer como mensageiro de PAZ e AMOR no coração de cada um de nós.
José Neto – Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências Desporto/Futebol; Formador de Treinadores F.P.F.-U.E.F.A.;Docente Universitário.