“O Cru e o Cozido” - uma breve reflexão (artigo de Manuel Sérgio, 317)

Espaço Universidade “O Cru e o Cozido” - uma breve reflexão (artigo de Manuel Sérgio, 317)

ESPAÇO UNIVERSIDADE08.12.201909:22

O Cru e o Cozido é uma obra em que o célebre antropólogo Claude Lévi-Strauss procura esclarecer os leitores sobre os vários mitos indígenas da Amazónia, de modo muito especial os que se prendem com o uso do fogo, na cozinha. E porque Lévi-Stauss seleciona, interpreta, diagnostica estes mitos que, por vezes, nos parecem indecifráveis? “Porque, diz ele, a cozinha assinala a passagem da natureza para a cultura. O cru representa o estado natural. O cozido é uma transformação operada pelos homens. A cozinha representa a construção da autonomia do homem face à natureza, a sua capacidade de se diferenciar e de ser. O homem não é só fruto das circunstâncias naturais, ele também empresta alguma coisa de seu, de único” (José Tolentino Mendonça, Nenhum Caminho será Longo, Paulinas, 2012, p. 82). Desde a grande explosão do “big-bang”, descobre-se um dinamismo omnipresente e misterioso, produtor da auto-criação e auto-organização do universo, chamado a cosmogénese. A partir deste momento inicial, estabelecem-se redes de ligações entre os inúmeros seres que vão surgindo, mas que são, afinal, emergências de um único e mesmo processo, que já tem biliões e biliões de anos. Todos os seres e leis conspiram para que despontem seres cada vez mais complexos, mas interdependentes. Afinal, todos os seres se relacionam entre si, precisam inapelavelmente uns dos outros. O universo é um “imenso evento de comunhão”. Com a cosmogénese, surge a biogénese e da biogénese nasce a antropogénese e, com a antropogénese, aparecem a inteligência e a consciência humanas, capazes de captar esta imensa realidade relacional. Na religião, assim o dizem os teólogos, encontramos a mais arcaica forma de inteligência e de consciência. Os nossos ancestrais antropóides viram nela o elo necessário, que ligava todos os seres. A esse elo chamaram-lhe inúmeros nomes, incluindo o de Deus.
 

                “Esse Deus é compreendido como a força misteriosa que cria e organiza todo o universo. Está em ação em cada movimento, em cada conexão, em cada ascensão. A moderna cosmologia refere-se a um abismo omninutridor que atua desde o começo do universo, há 15 biliões de anos. Não se trata de um lugar físico, mas de algo inominável, uma espécie de energia suprema que gera todos os seres e os absorve, quando desaparecem. É um oceano incomensurável de virtualidades, possibilidades e probabilidades. Se todas as coisas do universo, por uma hipótese impossível, evaporassem, conforme nos diz um cosmólogo contemporâneo, Brian Swimme (…), sobraria somente um infinito de puro poder generativo. Dele, todos viemos; nele, todos encontramos consistência; e para ele todos retornamos. Se não é Deus – porque Deus é sempre mais do que podemos imaginar – é pelo menos um poderoso sinal da sua presença” (Leonardo Boff, A voz do arco-íris, Sextante, Rio de Janeiro, 2004). Do que venho de escrever, até aqui, neste artigo, se infere que, na natureza, assim como houve um caos originário donde tudo surgiu, assim também, ao longo das idades, o caos tem sido generativo e criador. Com efeito, tudo é relação e é na relação que cada um dos  seres constrói a sua identidade. Portanto, se bem penso, e porque tudo é relação, o pecado não é mais do que a recusa visceral da relação fraternizadora. Não pretendo escamotear o que no caos pode persistir de existência brutalizadora, mas também recuso o reducionismo de um caos que não possa converter-se em fator de mudança e de novo equilíbrio. Aliás, o caos acontece, porque a “idade de ouro” está à frente e não atrás de nós, ou seja, é sempre o anúncio da retificação do erro anterior. Como Jung já o formulou, na mente humana trabalham animus e anima: aquele, o inconsciente masculino, fonte de mobilidade em direção ao futuro e de espírito crítico; e o inconsciente feminino que “canta e sonha” e estabelece uma beatífica adesão ao “cosmos”. Animus e anima são igualmente necessários, para que o ser humano possa progredir com passada mais certa, nos diversos momentos da História.
 

                Também o cru e o cozido são igualmente necessários, porque somos natureza que se fez e se faz cultura. O universo dá-nos lições a que é preciso atender. Talvez porque seja mais antigo do que nós e, para muito do que fez, não precisou do nosso contributo. Somos natureza, antes de sermos cultura. Pertencemos ao universo e não o universo a nós. Importa, por isso, escutar as mensagens que ele, a toda a hora, nos confia. Chegou a época da celebridade para todos. Na nova idade de oiro da sofística, que atravessamos, a mania do estrelato cresce em termos exponenciais. Demais, a sociedade mediática faz de qualquer pateta um sábio e de qualquer conselheiro Acácio (a quem o Eça insuflou a vida eterna) uma inteligência de brilho singular. E, se todos somos célebres, assim nos desabituamos de ser solidários e nos habituamos a ser solitários. Ora, o universo é de uma exemplar atenção, em relação ao diverso. Temos de aprender, com o universo, a ver tudo em tudo e treinarmos a nossa capacidade de atenção e de escuta. Relembro um texto de Clarice Lispector: “Eram duas horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. “Que rua?” perguntou ele. “O senhor não está entendendo” expliquei-lhe: “não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro”. Não sei porquê, olhou-me um instante com atenção. Deixei abertas as vidraças do carro, que corria muito e eu já começara minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato de felicidade. Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver”. Clarice Lispector quis, de certo, interpretar e ouvir, com uma candura que se adivinha, as vozes e os sinais das árvores e das flores, pois que sabia que o universo é, sobre o mais, cooperativo, dado que todos os seres são, entre si, interdependentes. Cumpre-me também notar que todos os seres, criaturas de Deus que são, têm valor, merecem respeito, são portadores de dignidade infinita.
 

                Sou, pelo que já escrevi, tentado a duvidar que a Evolução se destine a um cruel e sem piedade triunfo dos mais fortes. Um exemplo: o ser humano é “fisicamente” fraco, chega a ser débil – mas é o “homo sapiens sapiens”, quero eu dizer: está, no desenvolvimento do cérebro e portanto na sua capacidade de raciocínio e de apurada linguagem, a sua superioridade. Que o Darwin me perdoe mas eu, que acredito na Evolução (na Evolução que aprendi, em Pierre Teilhard de Chardin) atrevo-me a escrever (porque já o tenho dito muitas vezes) que o darwinismo assenta em duas pretensões contestáveis: 1. A interpretação da luta pela vida e do triunfo do mais forte, ou do mais apto, como expressão da fórmula do progresso e do triunfo do melhor, do superior num sentido absoluto. 2. A apresentação das ideias de Darwin, como algo mais do que meras hipóteses e portanto como teorias definitivamente estabelecidas. “O darwinismo social consiste em afirmar também que é necessário deixar que se exerça livremente a competição entre os seres humanos, porque a luta eliminará os indivíduos inferiores que travam a evolução e consequentemente o progresso e assegurará o triunfo dos indivíduos superiores, motores da sociedade e do futuro. Importa não intervir, particularmente no domínio económico, que não deve ser entravado por políticos de inspiração social e moral. Assistência socialista e caridade cristã são igualmente recusadas (…) porque contraprodutivas, contrárias ao progresso e à chegada de uma sociedade melhor, povoada por indivíduos superiores” (Gilbert Hottois, História da Filosofia – da Renascença à Pós-Modernidade, Instituto Piaget, Lisboa, p. 215). No desporto em que eu acredito, não há competição, mas coopetição, ou seja, a síntese entre competição e cooperação. Nele, não podemos encontrar, nem derrotados, nem excluídos. Somos relação. Entre Sujeitos. Por isso, existe o Desporto.  

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto