2 abril 2025, 11:15
Irmãos querem recuperar o recorde do mundo e inclusão em vez de favor
Melhor marca de Iron Man em dupla já foi dos irmãos Ferreira Pinto, que o querem recuperar; mas há outras metas no horizonte
Depois de terem crescido sem possibilIdade de fazer desporto juntos, os irmãos Miguel e Pedro Ferreira Pinto tornaram-se nos Iron Brothers. Nadam, pedalam e correm pela inclusão, muito mais a pensar nos outros do que neles próprios. A BOLA acompanhou-os na maratona de Barcelona
Faltam poucos minutos para as 8h30 da manhã. Os irmãos Ferreira Pinto, Miguel e Pedro, preparam-se para iniciar mais uma luta a dois.
É assim desde que o segundo nasceu, há 36 anos. Todas as lutas são feitas em família. Mas desde 2019, tornaram-se mais especiais para eles os dois. E que aventuras já viveram desde então!
Muito por causa de uma carrinha!
São essas façanhas que fazem com que, entre 37 mil participantes da Maratona de Barcelona, muitos olhos estejam neles. Há muita gente que já os conhece. Há comentários de atletas portugueses, mas também internacionais.
Andrei e Diana, da Roménia, cochicham, mesmo atrás de Pedro e Miguel. E metem conversa. «Vocês são realmente inspiradores», atira Andrei.
Miguel sorri e agradece, sem certeza de onde vem o reconhecimento do casal. Mas a resposta está na pala que ambos têm na cabeça: Iron Man Timissoara.
Até eles devem saber a história da carrinha!
Claro! Se a dupla romena anda pelo mundo dos Iron Man, certamente conhece os Iron Brothers! Miguel e Pedro Ferreira Pinto, pois claro.
«O projeto Iron Brothers nasceu há seis anos. Tu é que insististe, é verdade», admite Miguel perante a insistência do irmão. E reforça: «o Pedro é que me convidou, apesar do que toda a gente pensa».
Sim. Pedro nasceu com paralisia cerebral. Mas apesar da cadeira de rodas, companheira desde sempre, não há muita coisa que a disfunção de nascença o tenha impedido de fazer.
Não o impediu de cumprir em Barcelona, a meio de março, a terceira maratona. Não o impediu, como já se percebeu, de ter desafiado o irmão para fazer uma prova de Iron Man. Sim: 3,8 km de natação; 180 km de ciclismo; 42 km de corrida.
Uma tarefa só ao alcance de super-heróis, não é? Sim. E os Iron Brothers já fizeram quatro. Quatro!
E o raio da carrinha sem aparecer...
É preciso recuar a 2019 e a um fim de semana de irmãos para encontrar a origem da ideia da criação do projeto Iron Brothers. Tudo começou num vídeo que Miguel recebeu de uma amiga e que mostrava os irmãos Brent e Kyle Pease a terminar uma prova de Iron Man.
Kyle, como Pedro, tem paralisia cerebral. E também como Pedro, Kyle tem um irmão que faz tudo por ele: que o puxa num barco na natação; o reboca numa cadeira no ciclismo e o empurra na corrida.
«Quando viu aquele vídeo, o Pedro decidiu que também queria fazer aquilo. Eu nem percebi porquê, porque ele não é a pessoa mais aventureira do mundo. Mas quando todos pararam de chorar naquela mesa, após ver o vídeo, percebi: apareceram umas câmaras de televisão e um microfone à frente de duas pessoas que acabaram a prova. E o Pedro, durante toda a vida batalhou por melhorar as condições da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL)», recorda.
As carrinhas!
«Nós fazemos isto muito pouco por nós. O Pedro faz isto muito pouco por ele, porque ele tem condições familiares que lhe permitem fazer isto e tudo o que quiser. Ele faz isto pelos outros, que não têm voz. Acho que o Pedro começou a entrar nisto numa lógica de megafone dos outros. E tem sido giro vê-lo ganhar este empoderamento pessoal, porque acho que também é bom para ele», explica Miguel, sem largar a mão do irmão, que se emociona.
Desde que começaram o projeto, os dois irmãos levaram a bandeira e as lutas da APCL um pouco por todo o mundo. Neste dia estão em Espanha, mas já competiram também na Alemanha, Grécia ou Brasil.
«Como irmão, só posso querer dar-lhe as ferramentas de que ele precisa. Eu tenho um compromisso gigante, porque entendo que aquilo que ele quer fazer é muitíssimo maior do que ele ou do que eu. É um compromisso que tenho com ele. E é esta ligação do objetivo do Pedro e do meu com ele que faz disto aquilo em que se tornou», acrescenta.
Então e as carrinhas?
Ao longo dos anos de Iron Brothers, Pedro e Miguel já conseguiram várias cadeiras para utentes da APCL, além de outros materiais fundamentais para melhorar o dia a dia de jovens que continuam a ter de enfrentar demasiadas barreiras.
«Através da nossa ação, temos conseguido canalizar donativos para a APCL. Há empresas que dão coisas à associação, porque nos ouvem a falar sobre eles. Há muita gente que nos pergunta como podem ajudar e fazem-no», orgulha-se Miguel, reconhecendo que desde 2022 passaram a conseguir chegar mais longe.
«Desde que entrámos no projeto dos Heróis Betano, pudemos começar a sonhar um bocado mais. Começámos por ir ao Iron Man de Hamburgo, fomos a Florianópolis, e no ano passado fomos ao de Roth. Temos feito muita coisa gira, provas grandes, impactantes e que têm muita atenção. E com isso podemos sonhar mais alto», sublinha.
Mas alto, tão alto como uma carrinha?
Pais e irmãos juntaram os cacos resultantes da quebra da normalidade do seu dia a dia, e transformaram-nos numa obra arte de plena harmonia. Bem ao jeito de Gaudi, cuja obra pulula nas ruas de Barcelona, onde A BOLA conhece a família.
«Conheço muitos casos em que o nascimento de uma criança com deficiência foi um momento desagregador da família. No nosso caso, teve um efeito exatamente oposto. Nós fazemos quase sempre tudo juntos», realça Miguel. Como se fosse preciso dizer...
«Nunca houve o tema de não ir para ali porque não ia dar para o Pedro ou não levar o Pedro porque não vai dar para ele. Nós fomos nadar com golfinhos com o Pedro no México. Fomos fazer ski com o Pedro em Andorra. Desafiámos sempre as probabilidades e acho que isso só fez de nós pessoas melhores, mais fortes e mais empáticas, mais capazes de não olhar para o nosso umbigo. De calçar os sapatos do outro», acrescenta.
E de lutar por uma carrinha.
«O desporto era a única vertente em que não nos juntávamos. Fazíamos, ocasionalmente, a caminhada da ponte, mas nunca fizemos desporto juntos. E isto trouxe-nos a oportunidade de colmatar essa falha na nossa vida, que é aquilo que dois irmãos devem mesmo fazer juntos», defende.
E os pais, Fernando e Maria Teresa, não podiam concordar mais. Ou estar mais orgulhosos!
«O Pedro é o polo agregador, sem dúvida. Da família e dos amigos. Porque ele está sempre preocupado em estar com os outros, em arranjar coisas que possam juntar as pessoas. E isso faz com que ele tenha uma aura especial», defende a mãe.
«As pessoas, às vezes, têm uma ideia errada sobre o que é ter um filho diferente. Claro que proporciona uma vida diferente. Mas, ao mesmo tempo, tem coisas muito gratificantes porque ele é um miúdo fantástico, muito bem-disposto. E é, de facto, a pessoa que mais agrega toda a gente», acrescenta o pai, já depois de ter visto os filhos concluir mais uma prova juntos.
Apenas uma maratona. Nada demais.
«Esta foi relativamente tranquila. Nós estamos habituados a vê-los fazer provas 14 horas. Um bocadinho pior. Isto foi um aquecimento, quase nem teve piada», começa por brincar Fernando Ferreira Pinto. «É uma emoção muito grande. Ainda não nos habituámos a isto de os ver chegar. Porque eles dão exemplo a muita gente. E ao mesmo tempo ajudam a integrar estes miúdos [com paralisia cerebral]. Porque é muito fácil fazê-los felizes. Eles não pedem muito. Só pedem esta coisa de poder conviver com os outros, fazer o mesmo que os outros, estar sujeito às mesmas regras que os outros», nota.
E pedem uma carrinha.
Ah, quase nos esquecíamos. No início da epopeia dos Iron Brothers, havia um propósito muito claro na cabeça do Pedro. Um objetivo que ele não se cansa de relembrar, mas que, seis anos depois, parece continuar demasiado distante.
Uma carrinha. Uma carrinha para os utentes da APCL.
«Ainda temos muita coisa para atingir. Mas acho que o alvo mais distante é o de conseguirmos carrinhas de transporte de utentes para a APCL. Essa é uma das grandes lutas e bandeiras do Pedro, não é?», pergunta Miguel ao irmão.
«É uma porcaria! As carrinhas estão um lixo!», responde Pedro.
«É verdade, são mesmo uma porcaria aquelas carrinhas que os levam todos os dias para a escola. São mesmo muito, muito antigas e sem condições. Estão cheias de ferrugem e não têm ar-condicionado», detalha Miguel.
E o pai complementa a ideia.
«O Pedro pede carrinhas a toda a gente. Lembro-me quando foi ao Campeonato da Europa a Hamburgo, a televisão estava a entrevistar o Miguel no final, e ele estava a dizer ‘pede carrinhas!’ Ele quer ajudar, porque de facto, as condições são péssimas. Mas a verdade é que a APCL não tem dinheiro. Por isso, quando ele está nestas coisas que envolvem muita gente, é uma boa oportunidade para chamar a atenção para as necessidades que têm. Não são muitas, mas querem ter carrinhas. Querem ter o mínimo conforto e não têm em carrinhas que, no inverno são gélidas, e no verão são tórridas», lamenta.
E nada vai impedir o Pedro de continuar a lutar por uma carrinha para os amigos da APCL. Afinal, já fez quatro Iron Man. Cinco meios Iron Man. E vai na terceira maratona.
Nunca uma carrinha custou tanto.
Melhor marca de Iron Man em dupla já foi dos irmãos Ferreira Pinto, que o querem recuperar; mas há outras metas no horizonte
Apesar de limitado por uma doença o ter impedido de treinar antes da maratona de Barcelona, Miguel conseguiu guiar o irmão num tempo que o deixou satisfeito: 3h13 minutos.
Até porque, em termos desportivos, principal foco dos irmãos são as provas de Iron Man. E quando é isso que está em causa, além da forma física de Miguel, é igualmente importante o estado de Pedro, que tem de aguentar toda a prova.
«A preparação do Pedro é extraordinariamente importante, apesar de ser um bocado a extensão daquilo que já é a vida dele. Faz fisioterapia e hidroterapia, porque é isso que lhe dá as ferramentas para ter melhores condições de vida», explica Miguel, apontando as maiores dificuldades sentidas pelo irmão.
«Na corrida ele até nem vai muito instável, mas no ciclismo vai em grande instabilidade lateral. E tem de estar capaz de suportar o pescoço, as forças laterais. É importante que ele esteja bem, porque quanto melhor estiver, melhor aguenta aquela pancada», realça.
Se tudo correr dentro do planeado, os Iron Brothers farão, este ano, o quinto Iron Man. A inscrição foi inicialmente aceite em Itália, mas posteriormente recusada porque a organização entende que eles Miguel e Pedro «representam um perigo para os outros participantes».
E esse tipo de resposta, que é mais recorrente do que se possa pensar, é motivo de revolta de Miguel.
«Ainda falta ser realidade não termos de pedir autorização para participar em provas. É algo que considero uma coisa terrível. Porque na realidade não há inclusão. Há um favor. E a inclusão não pode ser um favor. E enquanto pudermos chegar à inscrição de uma prova e dizer sim, é uma dupla; sim, vai um acompanhante; sim, está tudo bem no formulário de inscrição. Enquanto isso não acontecer, não há inclusão. Há favor», lamenta.
Principais provas
Iron Man Coimbra – 2021
Iron Man Hamburgo - 2022
Iron Man Florianópolis - 2023
Challenge Roth, Alemanha - 2024
Half Iron Man
Cascais - 2019
Grécia - 2022
Setúbal - 2023
Challenge Lisboa -
Triton Lisboa -
Maratona
Aveiro - 2019
Sevilha - 2021
Barcelona - 2024
Para já, porém, nem isso trava a ambição que é muito clara. «O sonho é ir buscar o recorde do mundo do Iron Man outra vez. Ele já foi nosso, em Hamburgo, há três anos e agora está a cerca de 24 minutos», revela, confiante de que a missão será bem-sucedida.
«É ambicioso, mas escolhendo a prova certa, com o treino certo, não tenho dúvidas que chegaremos lá. Nós estamos mais do que preparados. Em 2024 fizemos um Iron Man que é duríssimo, e ainda assim conseguimos o nosso melhor tempo de sempre. Portanto, sei que nós estamos prontos para o que quisermos fazer. Não é, mano?», desafia para receber de Pedro um sorriso rasgado.
Ufa! Nunca uma carrinha custou tanto!
2 abril 2025, 11:15
Melhor marca de Iron Man em dupla já foi dos irmãos Ferreira Pinto, que o querem recuperar; mas há outras metas no horizonte