O hoquista do Sporting e da seleção portuguesa, João Souto, assume-se no auge da carreira. Ainda a libertar-se da forte carga emocional de segunda conquista da Liga dos Campeões pelo clube de Alvalade, contribuindo com golo decisivo na final, sobre a Oliveirense, o avançado, de 31 anos, declara ambição sem termo e ainda não pensa pendurar os patins pelo estetoscópio de médico, profissão para a qual se formou. De corpo robusto, mas sorriso e trato fáceis, fala da família com extremo afeto e gratidão e não esconde que é um leão em rinque. Por vezes demasiado feroz, admite. Ainda no rescaldo da vitória do Sporting na final da Liga dos Campeões, a segunda da carreira de João Souto, ambas ao serviço do clube leonino, poder-se-á dizer que não há melhor conquista da Champions como a primeira ou esta última teve sabor especial?- Neste caso, esta teve um sabor especial, porque a primeira foi conquistada em tempos de pandemia de Covid e não pudemos ter público nas bancadas, não podemos festejar com os nossos adeptos, como tivemos e fizemos agora. Portanto, esta conquista acabou por ter um sabor especial. Por termos um contacto mais próximo com quem nos apoia ao longo de todo o ano. - Da conquista da Champions, dos momentos que se seguiram à final, parece ter transbordado uma forte carga emocional, talvez não só por esse triunfo, mas pela maneira como foi alcançado, por todo o percurso, a saída iminente do treinador… É verdade que essa carga existia?- Sim, creio que todos os jogadores tiveram a oportunidade de referi-lo no final do jogo. Este título teve uma carga emocional especial, por vários fatores. Em primeiro lugar, porque já sabíamos de antemão da saída do Alejandro [Domínguez], um treinador que nos deu imenso durante estes dois anos, que nos fez evoluir enquanto jogadores, de uma forma muito, muito… grande. E porque não tínhamos ainda ganho títulos com ele [com o técnico argentino que sai no final da temporada por comum acordo com o clube], e creio que pecava por isso, que era uma coisa que faltava a este grupo. Porque praticávamos um hóquei espetacular, tanto o ano passado como este, e faltava refleti-lo em títulos. - …- Juntando a esse facto o que aconteceu a época passada, que foi duríssima, e em que, repito, praticávamos um hóquei excelente, em que estivemos em duas finais e perdemo-las. Ficámos com sabor muito amargo, e esta vitória foi a libertação dessas emoções todas. As palavras que mais dizia, bem alto, no fim do jogo, foram ‘conseguimos, finalmente conseguimos!’. Porque notava-se o nosso trabalho, a nossa evolução, mas num clube como o Sporting, se isso não se traduz em títulos, daqui a uns anos ninguém se lembra que por aqui passámos, e creio que nós merecíamos ficar mais uma vez na história do clube. E neste caso, o também o Alejandro, a quem seria injusto sair do Sporting sem um título, um grande título, como é o da Liga dos Campeões. - O próprio percurso até a final foi conturbado. Desde a fase de grupos, que começou por não correr bem e só nos últimos jogos o apuramento ficou garantido. Depois, os quartos de final com o Barça. Esses jogos com os catalães, que eram os favoritos…- O percurso que fizemos nesta Liga dos Campeões ainda enaltece mais a nossa conquista. Porque, desde o início foi muito difícil. Começou por calhar-nos o grupo mais forte, que apelidaram de grupo da morte, com o Sporting e o Benfica, dois candidatos a vencer a competição, e o Calaffel e Reus, equipas espanholas de segunda linha europeia, mas muito competitivas. Passámos o grupo no limite, com um empate em Calaffel a duas jornadas do fim, num ambiente adverso. Depois, o super Barcelona… Não nos amedrontámos, preparámos muito bem essa eliminatória. Felizmente, conseguimos, na nossa fortaleza, o João Rocha, ganhar uma boa vantagem. Vencemos por 4-1, mas sejamos sinceros, nem nós esperávamos. E na 2.ª mão, sabíamos o ambiente que iriamos encontrar, foi a melhor assistência da última década no Palau Blaugrana, com mais de 5000 pessoas. O Barça, com a sua qualidade imensa. Soubemos aguentar a pressão, e talvez tenha sido foi o jogo mais importante da nossa caminhada na Champions, por deu-nos aquele clic de: ‘nós somos capazes’. Este plantel, no ano passado, não ganhou, mas é supercompetente, temos as ferramentas para vencer, e só temos de acreditar. Depois a Final Four, no Porto, contra a equipa da cidade, FC Porto, e mais uma vez ultrapassámos esse obstáculo com grande distinção. Apesar de termos sofridos cinco golos [vitória por 6-5], defendemos bem e controlámos a mais-valias do adversário, e isso fez a diferença. A final [contra a Oliveirense] foi um jogo com as equipas muito encaixada, muito evoluídas taticamente, e acabou por decidir-se em pormenores… - Com o seu golo, a fazer o 2-1 final, a ser decisivo… - Creio que o mereci! Foi um prémio. Sou um jogador de muita entrega, de luta, de equipas, mas ao longo da carreira tenho mostrado que, sem ser um dos jogadores mais virtuosos, tenho muita qualidade técnica nas bolas paradas. Foi um justo reconhecimento do que tenho vindo a fazer nestes últimos dois anos, e em toda a minha carreira. Fiquei feliz por isso. - Esta é a sua melhor temporada?- Sim, individualmente. Não só pelos números, de golos e de assistências, mas por aquilo produzir e ajudar a equipa a crescer. Mais por isso. Por tudo o que evolui como jogador nestes últimos dois anos. Ganhei versatilidade em campo, consigo fazer mais coisas no sistema de jogo da equipa e creio que isso reflete-se. Play-off do campeonato - Arrancou o play-off do campeonato e o Sporting terá de se transcender, outra vez, se quiser ser campeão. Concorda?- Sei que se fala muito nos bastidores, e entre os nossos próprios adeptos, da irregularidade da nossa equipa, mas essa afirmação não é 100 por cento verdade. Não somos nós que somos irregulares! As pessoas vão percebendo, mas não me canso de sublinhar que o campeonato português é o melhor do Mundo, supercompetitivo. Apesar de admitir que temos tido um ou outro deslize, importa frisar que outros resultados menos conseguidos não se deveram só a demérito nosso ou a irregularidade, as outras equipas são muito fortes e são muito bem orientadas. Há rinques muito difíceis, pela pressão do público contrário e pelas condições da própria pista. Em qualquer lado é muito complicado ganhar. Mesmo aos últimos classificados. Há que desmistificar essa irregularidade… Mas respondendo diretamente à sua pergunta… Sim, obviamente, teremos de estar ao nosso melhor nível, até melhor do estivemos na Liga dos Campeões. Temos um caminho super difícil para chegarmos ao título nacional. Não ficámos na posição queríamos na fase regular. Nos quartos de final [contra o SC Tomar] ainda temos o fator casa do nosso lado [Sporting venceu o primeiro jogo, no Pavilhão João Rocha, por 3-2, com o golo decisivo marcado nos últimos segundos do jogo], mas se passarmos deixaremos de o ter [fator casa] e certamente defrontaremos os primeiros classificados da fase regular, que são equipas do melhor que há… - Provavelmente, o FC Porto… [adiantou-se ao Riba d’Ave, ganhando-lhe na Dragão Arena por 4-3]- Sim, o FC Porto. E se evoluirmos na prova, o Benfica, a Oliveirense ou o OC Barcelos, todas equipas de topo mundial, e nós sem o fator casa. Em suma, o caminho será muito difícil, e teremos de estar a um nível tão alto ou, se possível, superior ao que estivemos na Final Four da Liga dos Campeões. Sou João Souto-jogador, ainda não… doutor - Como é que aprecia mais ser reconhecido: por Doutor Souto ou João Souto bicampeão europeu?- Não, creio que são fases da vida diferentes, pelo menos gosto de as distinguir. Atualmente, sou só jogador de hóquei em patins, atleta de alta competição, e estou confortável com a maneira como os meus colegas de equipa me tratam, por Souto. - Nunca o tratam por doutor?- Por vezes, sim, na brincadeira. Tenho amigos que o fazem também, mas sempre em tom de gracejo. Mas neste momento sou João Souto, jogador de hóquei em patins e totalmente focado na carreira desportiva. Mas tarde, então, sim, espero vir a ser tratado por doutor, mesmo à séria! (risos) - A medicina ainda não tem influência na sua vida?- Tem. Pode não ser palpável, mas que tem influência, tem! Nem que seja pela base, pela formação como pessoa. Sou muito grato à minha família por ter-me proporcionado tirar o curso superior. Grato ao meu percurso académico e ao pouco tempo que trabalhei em hospital. Porque fez-me uma melhor pessoa, mais bem formada, com outros valores e… [pausa]. Sei que por vezes, dentro de campo, isso não se reflete… (pausa) Porque sou um jogador muito emotivo, com os nervos à flor da pele, e às vezes fujo um bocado a essa linha. Mas quem me conhece cá fora sabe dos meus valores, do meu caráter, e essa parte da medicina e da formação académica ajudou-me muito. - A família. Logo após a final da Liga dos Campeões, ainda no Pavilhão Rosa Mota, fez-se acompanhar da sua família e amigos nos festejos, celebrou com eles. É também reconhecimento de algo?- Os meus pais e a minha irmã foram determinantes para a minha formação académica, porque nunca me deixaram ir abaixo, desistir, porque houve momentos difíceis, conciliar as duas vertentes, a desportiva e a académica. Deram-se sempre todo o apoio, em tudo o que precisei, estiverem lá sempre. Nas alturas de festejar conquistas importantes, são as primeiras pessoas de quem me lembro, além da outra família, que são os nossos companheiros de equipa. A família sofre diariamente por nós, em casa. Vivo em Lisboa, com a minha namorada, é com ela que, no dia a dia, que partilho as minhas dores, mas a família está mais distante, os meus pais e irmã [em Fânzeres, Gondomar]. Por coincidência, a Final Four foi no Porto, o distrito onde nasci, e pude ter a família mais próximo de mim fisicamente, a apoiar-me. Sem dúvida, que nos dá uma força extra. Seleção e o Mundial - Estamos em ano de Mundial (será disputado em Novara, Itália, entre 16 e 22 de setembro). A seleção certamente fará parte dos seus planos nesse futuro próximo. Quais são as suas ambições?- A nível pessoal, não posso alongar-me muito nos comentários, porque não depende só de mim, mas do selecionador, se me convoca… Mas, do que depender de mim… tenho feito de tudo para estar ao mais alto nível, para poder ajudar a seleção, se estiver presente [no próximo Mundial]. Sobre as ambições da nossa equipa, creio que há cada vez mais seleções de enorme qualidade. Haverá cinco candidatos ao título, Portugal, Espanha, Argentina, Itália e França. Portanto, está tudo dito. O nível de competitividade está no ponto mais alto de sempre. De qualquer forma, apesar de, nos últimos anos, estas competições não terem corrido tão bem a Portugal, creio que temos reais possibilidades de conquistar o título desta vez. Primeiro, porque viemos de uma transição de selecionador, com as necessárias adaptações às novas ideias e formas de estar. No Torneio de Montreux, apesar de não termos vencido, correu bem, deu para perceber as dinâmicas que o novo selecionador pretende dar à equipa. Já o conhecia e tive com excelente feedback. Creio que toda a gente gostou da forma de estar do Paulo Freitas, de como encara o hóquei e a seleção, e com mais tempo de trabalho, o que para este Mundial vai ser possível, com o assimilar das dinâmicas, temos sérias possibilidades de sermos campeões mundiais. - Haverá ambições de carreira, do ponto de vista desportivo e financeiro, fora de Portugal, ou os jogadores portugueses já estão no topo cá dentro, numa das potências da modalidade?- Esse é um tema que se debate muito nos bastidores do hóquei em patins, e é, de facto, muito discutível… Não consigo dar uma resposta cabal. Creio que o exemplo do Barça é bom. Continua a ser um clube apetecível, mas por circunstâncias do campeonato espanhol, que tem vindo a perder competitividade entre as equipas mais fortes e as outras, torna-se menos apetecível para os jogadores portugueses. Em contraponto, o nosso campeonato, como já disse, cada vez está melhor, as nossas equipas têm um nível de profissionalismo cada vez mais elevado, trabalha-se muito bem em todos os clubes, até nalgumas equipas da 2.ª divisão. Assim, para fazer carreira, Portugal acaba por ser mais apetecível do que uma aventura no estrangeiro.