- Devo tratá-la por Francisca Jorge ou Kika?- Sou conhecida como Francisca Jorge. Mas da mesma forma que o João Sousa e o Pedro Sousa têm um nickname, Kika é mais fácil para toda a gente. Serei sempre tratada como Francisca as primeiras vezes, para quem não me conhece. Haverá o momento Francisca Jorge, espero que seja esta época, e é, de certa forma, uma afirmação. Mas sou a Kika no meu mundo, no meio familiar, amigos e agora quero transportar para o ténis. É a minha identidade. - Aos 23 anos, estreia-se num Grand Slam (qualifying) no Open da Austrália. Tarde ou cedo?- Foram três anos na luta. Não foi tarde, nem cedo, foi quando foi. Em 2022, não estava preparada para jogar um Grand Slam, foi muitos altos e baixos, enquanto em 2023 o nível médio esteve sempre um pouco mais alto e elevado. - Se não tivesse competido no México e no Brasil, no final do ano, seria possível apurar-se para o Open da Austrália? - É isso. Não foi tudo de última hora, já estávamos a planear acabar a época mais longe. Acabamos por ir ao México, vindo de Lousada e fiz a adaptação mais brusca ao piso rápido e depois terra batida. E o Brasil correu bem. - No México (ITF Veracruz) atingiu as meias. Após a derrota, não conteve as lágrimas?- Na altura não foi engraçado, mas sinto que não estava bem, não estava a sentir o momento. Na viagem, sabia que se ganhasse ficava muito perto e teria duas semanas, no Brasil, para pontuar. Tinha isso em mente. Mas sou humana, e na verdade, depois do primeiro set a adversária jogou bem e, de certa forma, descambei. - Chegou a temer não alcançar o objetivo? A ingratidão de uma época decidida num jogo…- Senti que quase tinha perdido tudo, todo o esforço. Estava a fazer as coisas bem e, de repente, a cabeça virou-se contra mim e não conseguia desbloquear. A pressão vai estar sempre presente, e é um privilégio, porque é sinal de que estamos à procura de passar os limites. Reajo de maneiras diferentes à pressão. - Bem ou mal?- Depende do meu estado de espírito e da situação. Esta época estive mais consistente no estado de espírito. Os jogos que perdi foram competitivos, não perdi com qualquer uma, perdi porque a outra mereceu. Não foram jogos em que desliguei, deixei de estar presente e deixei escapar a oportunidade. Sinto que foi mais positivo neste aspeto. - Mas a pressão é boa? A pressão é boa no sentido de me motivar. Passo a batata quente e encaro de expetativas baixas. A pressão está em ter uma certa performance e agarro-me: ok estou como estou, a jogar bom ténis, a soltar-me e o ténis acaba por se desenrolar sozinho. No Oeiras 60 [em abril] estava cheia de pressão, porque perdi quase três meses de época devido a uma lesão, só comecei a jogar em março. - Em março pensava chegar a dezembro às portas do top-200?- Foi outra pressão extra ao longo do ano. Perdi três meses e tive de compensar. Mas mesmo se não tivesse alcançado este momento de euforia total do qualifying para o Open da Austrália a época já tinha sido muito boa. - E os pontos no ranking? Como gere a escalada na hierarquia? - Toda a gente faz contas, é normal. Eu também já fiz, mas já passei essa fase. Deixo o meu treinador fazer as contas. Se eu as fizer, perco o foco, jogar bom ténis. Agarro-me mais ao resultado. Cheguei a Mogi das Cruzes [W25 no Brasil] e faltavam 25 pontos, mais umas variáveis, faço os quartos de final e o meu treinador celebrou como se tivesse ganho o torneio. Com aquele ranking era capaz de entrar. A minha mãe enviou-me uma mensagem a dizer que não estava garantido. Sou um bocado chorona, emotiva - Qual é o contributo dos seus pais na sua carreira e na da sua irmã Matilde?- Os nossos pais sempre nos apoiaram muito. Se não me tivessem acompanhado até aos 17 anos... sou um bocado chorona, emotiva. O meu choro não é de desistir, largar o jogo, é uma forma de libertar a energia mais negativa. - Essa emotividade é um contrassenso no ténis?- É verdade. Temos de demonstrar frieza e lucidez na postura comportamental. Para a minha mãe, na cabeça dela, ter deixado uma filha ir para Lisboa em setembro de 2017, aos 17 anos… e a Matilde veio com 15 apenas, para lutar pelo sonho, via-a a sofrer em campo, lutava, mas não deixava o jogo fugir. E dizia-me: ‘Kika, se estás com este sofrimento todo mais vale meteres as raquetes de lado e focares-te na escola’. Os meus pais nunca me cortaram as pernas e eram os primeiros a dizer: ‘há um torneio, queres ir?’. - Mantém-se a ação dos seus pais na gestão da sua carreira? - Estão ambos muito presentes, mas hoje é um pouco diferente. Antes ditavam muito o que deveria ou não fazer, geriam os torneios, eram os meus agentes, mais a minha mãe. Agora respeitam mais o meu trabalho com a minha equipa. A minha mãe é mais respeitadora e dá-me o meu espaço, o meu pai é mais preocupado. - E irmã Matilde, onde entra?- A presença da Matilde no CAR do Jamor, na equação, apesar de duro, foi um fator libertador e marcante. - A Kika chegou primeiro…- Foi um momento em que os meus pais disseram: não temos [dinheiro] para as duas, vamos investir nela primeiro. E o primeiro é deixá-la abrir os horizontes e ir para Lisboa tentar a vida do ténis. Foi um esforço. Dos dois lados. A minha mãe é professora, é muito exigente e teve a sorte de sermos boas alunas. Fiz o 12.º ano, inscrevi-me em Desporto na Universidade do Porto porque a minha casa não deixa de ser Guimarães. Esta é uma casa temporária, mas estou cá há seis anos (sorri). O ténis é o Plano A… e o B - Nunca sentiu o ímpeto do salto para os EUA ou Barcelona?- Fui sempre das melhores juniores, recebia convites das universidades, mas nunca foi a minha cena. Não digo que seja muita caseira, sempre fui muito independente, mas achei que não era o que queria. Queria ser profissional e jogar os Grand Slams e ir para a faculdade iria retirar-me três ou quatro dos meus melhores anos. Ia para o 12.º ano e surgiu o CAR Jamor, parecia que estava reservado. Tinha 17 anos e tive de tomar as grandes decisões. Abriu-se uma oportunidade gigantesca, queria atirar-me de pés juntos e tinha por trás uns pais super preocupados que geriam a minha carreira. Disseram-me que tinha de acabar o 12.º ano e inscrever-me na faculdade. E assim fiz. – Portanto, a universidade ficou como plano B? - Veja-a como plano C. Na altura dizia plano B. O plano A é o ténis, ser profissional, andar nos Grand Slams e grandes palcos do WTA. Plano B é manter-me no WTA. Objetivo é passar o qualifying e depois... que venha a Sabalenka - Agora, Open da Austrália: qual é o objetivo?- Vou confiante. Sinto que estou a jogar bom ténis. Tive esta conversa com o Vasco [Antunes], o meu treinador. O objetivo é top-200 e, em teoria, basta ganhar uma ronda. Mas ambicionamos eventualmente passar o qualifying. É passar as boas sensações do final da época para jogar bem já na Austrália e os próximos torneios. - Quem gostava de defrontar? - Venha quem vier. Mas gostava da Sabalenka, tem muita intensidade, poder de fogo e gostava de perceber em jogo como reajo. Uma coisa é treinar, a outra é em competição. A Swiatek tenho curiosidade, mas não estou preparada para a enfrentar. - Pediu concelhos aos seus compatriotas tenistas?- Falei com o [Nuno] Borges e enviei uma mensagem ao Francisco [Cabral] que me disse que nos primeiros dias iria estar morta. Muda tudo, é meio-dia de diferença, é virar ao contrário. A Maria João [Koheler] disse-me que iria gostar muito. Só ouvi coisas boas e passa por aproveitar o momento, tem tudo para correr bem e desfrutar em jogar ténis. - O que se seguirá à Austrália?- Sinto-me bem. Ainda estou no ritmo, os treinos têm servido para gerir a forma e o cansaço. Depois da Austrália tenho dois torneios no Porto (75 e 50) e a seguir vou para fora. Nem férias, nem pré-época. Continua...