Norberto Mourão é o exemplo perfeito de que, nesta vida, nada acontece por acaso. Foi preciso um acidente, que podia ter sido fatal, em 2009, para que um pasteleiro se tornasse num dos melhores paracanoístas portugueses. O próprio afirmou que passou de servir o patrão para servir o país, mas já lá vamos. Naveguemos primeiro pela história de um transmontano que nasceu em Vila Real e agora fixou-se em Lagoa, no Algarve, com a mulher e o filho, de nove meses. «Sou um pouco de todo o país… sou português, mas claro que sou transmontano», conta-nos Norberto, que conquistou o Diploma Olímpico nos Jogos Paralímpicos em Paris, depois de, entre muitos títulos, já se ter sagrado campeão europeu por duas ocasiões, juntando o bronze nos Jogos de Tóquio em 2021. «Como não cheguei à medalha, acaba por ser tudo diferente. Em Tóquio tinha sido terceiro e acabava por ser das pessoas mais requisitadas, mas desta vez fui quarto, que é um lugar extraordinário. O empenho foi total e os tempos que fiz foram brutais», confessou, a propósito de uma prova em que, ainda assim, estabeleceu novo recorde pessoal com 52,70 segundos. «O feedback que vou tendo é, sem dúvida, muito positivo, porque o desporto não são só as medalhas», acrescentou o atleta que, antes de mais umas pagaiadas, fez questão de deixar uma palavra a A BOLA de todos os desportos. «Aproveito para dar os parabéns a A BOLA porque vocês têm feito um trabalho extraordinário. Entrevistaram alguns atletas que estavam em situações um pouco mais aborrecidas e que não têm culpa nenhuma de alguma situação que possa ter acontecido [caso do doping nos Jogos Paralímpicos]. Vocês não são a ‘bola’ porque vocês falam das modalidades e falar do desporto paralímpico é algo extraordinário», confessou. Norberto é um caso de superação e uma inspiração de vida. Em poucos minutos de conversa, ensina-nos a transformar um problema numa solução.Entre tantas medalhas e distinções, o paracanoísta não esquece que é um Herói Betano, um projeto de responsabilidade social que visa apoiar o desporto amador. «Eles surgiram na minha vida em 2021, no lançamento da campanha Heróis Betano. Na altura, candidatei-me e acabei por ter a sorte de ser um dos escolhidos. Eles têm-me ajudado a estar focado nos meus objetivos e a treinar diariamente. Este projeto dá-me uma segurança brutal para que, no caso de algum dia as coisas falharem, poder contar com eles. Todas as empresas poderiam ter capacidade para fazer algo deste género», reforçou. 29 de setembro de 2009, o dia que mudou a vida de Norberto Para Norberto chegar aqui teve todo um passado atribulado, que quase dava para escrever um livro. A data aponta-nos para 2009, ano em que um acidente mudou a vida do então pasteleiro, que vivia em Camarate, uma vila do Município de Loures.«Fez neste dia 29 de setembro 15 anos… Lembro-me de ter saído de moto de casa para o trabalho e de pensar que só faltava um mês para fazer anos. Depois de sair do trabalho, quando faltavam dez curvas para chegar a casa, havia uma subida que, a meio, ficava mais estreita com um café. Eu abrandei e assim que passei pelo café acelerei e apanhei a tinta de uma passadeira… A roda de trás da moto fugiu na passadeira… Bati nuns pinos que estavam em cima do passeio e, no momento do impacto, a perna direita foi cortada pelo volante e ficou logo separada pelo corpo. A perna esquerda ficou também amputada abaixo do joelho, que ficou completamente desfeito. Fiquei com as duas pernas separadas do corpo», contou-nos Norberto com a naturalidade de quem aceitou o destino que a vida lhe traçou. Lembro-me de ter metido a mão na perna direita e ter sentido um buraco «Quando os bombeiros de Camarate chegaram, a minha maior preocupação era a falta de ar, porque sou asmático. Pedi para avisarem a minha mãe, mas não sabia de cor o número de telefone. Hoje, continuo sem saber… Pedi ao meu patrão para não ir trabalhar no dia seguinte e lembro-me ainda de ter metido a mão na perna direita e ter sentido um buraco. Os bombeiros levantaram-me as mãos, viram sangue e só nessa altura é que me apercebi: ‘Olha, aleijei-me’, porque eu nem sequer me apercebia que não tinha as duas pernas», acrescentou. De todo este episódio, Norberto só guarda uma mágoa, porque sabe que algo ficou por fazer. «Até aos bombeiros chegarem, fui socorrido por uma enfermeira que não sei quem é… Gostava que, se ela visse esta entrevista, entrasse em contacto comigo, porque tinha todo o gosto em agradecer-lhe.»Só quem o ouve percebe como, aconteça o que acontecer, Norberto ainda consegue ironizar com um acidente que lhe mudou a vida por completo.«Eu devo ser das poucas pessoas que entrou no hospital antes das pernas [risos]. As pernas vinham atrás a ser carregadas num saco por um dos bombeiros. Eu levo isto tudo na brincadeira, porque o corte com o passado foi feito naquele dia…» O médico disse-me que era mais fácil eu ganhar o Euromilhões do que sobreviver De 29 para diante, seguiu-se um processo de reabilitação, mas as expectativas iniciais previam o pior e há uma frase que Norberto nunca mais vai esquecer.«O médico que me operou disse que era mais fácil eu ganhar o Euromilhões do que sobreviver», contou, sem esquecer o momento em que perguntaram à sua mãe se ele era o único filho.Passado um mês, Norberto queria ir para casa, porque, apesar de lhe terem tirado muito, havia uma coisa que a vida não lhe podia tirar.«No dia 29 de outubro fazia anos e tinha pedido ao médico para me deixar ir a casa. Nesse dia, fiz questão de que os bombeiros passassem pelo sítio do acidente para não ficar com trauma nenhum, porque acho que devemos enfrentar tudo de frente. Ainda hoje se passar lá, não tenho problema nenhum…», confessou. Já no conforto do lar, houve um momento que causou desconforto e que o atleta jamais irá esquecer:«A minha casa ainda não estava adaptada e, antes de irmos almoçar, tive de pedir ao meu pai ajuda para ir à casa de banho. Ele levou-me ao colo e vi a dificuldade que passou para me levar e trazer. Isso fez com que eu quisesse ganhar mais força para me tornar mais independente e para que os meus pais não tivessem que fazer tudo por mim.»Este foi o clique para Norberto não desistir e dizer sim à vida. Nuno Vitorino, ex- atleta paralímpico, que era seu vizinho, deu-lhe a sua primeira cadeira de rodas e o resto… é história.«Ao início, a minha mãe fazia questão de me tapar da cintura para baixo para não ter de olhar e ver que estava sem pernas...», contou a propósito de um processo que rapidamente passou de tabu para natural. Antigamente era útil ao patrão e agora sou útil ao país «O acidente se calhar até fez com que pudesse ter uma vida melhor… Antigamente, era útil ao patrão e agora sou útil ao país. Faço aquilo de que gosto, sou muito mais feliz e completo», confessou Norberto Mourão, com um visível brilho nos olhos de quem se sente realizado, aos 43 anos.As limitações existem e é impossível fugir delas, mas Norberto tem quase sempre resposta para a sociedade muitas vezes cruel em que vivemos.«Discriminação? Não ligo ao que os outros dizem… Quando são crianças, falo com elas e explico a situação. Quando são pessoas mais velhas, não ligo e sigo a minha vida…» E agora? Já passava uma hora de conversa, mas não podíamos deixar Norberto Mourão partir sem olhar para o futuro. «Espero ter forças para conseguir uma das vagas para os Jogos Paralímpicos de Los Angeles. E quem sabe, depois vem Brisbane, quatro anos depois…»Por enquanto, já tem o curso de treinador e começa a dar apoio ao seu clube, o Kayak Clube Castores do Arade, porque chegou a hora de retribuir tudo o que fizeram por ele.Desafiado a escolher uma música que o defina, Norberto escolheu o The Show Must Go On dos Queen, porque a vida continua e Norberto tem um sorriso maior do que outrora.