15 fevereiro 2024, 08:30
«Estar no Quénia, tão longe de Portugal, e ver uma camisola do Benfica...»
A BOLA esteve no Quénia à conversa com Samuel Barata
Centros de treino da Adidas, Nike e Decathlon, por exemplo, servem de ninho para quem tem mais potencial; «Era o que fazia o professor Moniz Pereira nos anos 70/80», diz António Sousa
Esta pequenina vila, a cerca de 300 quilómetros de Nairobi, capital do Quénia, é o centro mais popular de treino do país e um dos mais populares do mundo. A par, por exemplo de Boulder (Estados Unidos), Font-Romeu (França), St. Moritz (Suíça) ou Sestriere (Itália). É aqui que muitos dos melhores fundistas do mundo se treinam, como Eliud Kipchoge, o bicampeão olímpico da maratona.
Fruto de estar situada a 2400 metros de altitude, Iten é tremenda fonte de alimentação para o treino de resistência, mas não só. É também centro de muitos negócios relativos, claro, ao atletismo. Há já vários anos que quase todas as mais poderosas marcas de equipamentos desportivos, como Adidas, Nike e, recentemente, a Kiprun, ligada à Decathlon, têm aqui centros de formação.
António Sousa, treinador de Samuel Barata, explica-nos de que se trata: «Há muitos anos que os empresários dominam as corridas, principalmente as de estrada, como seja a Global Sports, que representa o Eliud Kipchoge, ou a Rosa Associati, que representa o Jakob Kiplimo. Estas organizações aperceberam-se de que era grande negócio vir para o Quénia, descobrir os melhores talentos, dar-lhes boas condições de treino, alimentação, descanso e de material, fazê-los crescer e depois pô-los a correr nas maiores provas internacionais, recebendo uma percentagem de todas as receitas auferidas pelos atletas. É uma espécie de toca e foge: os fundistas treinam-se no Quénia durante a maior parte do ano, vão competir à Europa, América ou Ásia, por exemplo, regressando logo ao país para voltar a treinar.»
«No fundo», continua António Sousa, «era o que fazia o professor Moniz Pereira nos anos 70/80, recrutamento atletas a nível nacional e trazendo-os para o centro de estágio de Alvalade. Treinava-os, alimentava-os, controlava-os e metia-os a correr pelo Sporting. Nada de novo. A diferença é que, como existe muito dinheiro envolvido, agora é uma selva entre os empresários para ficarem com os melhores. Além disso, são muitos empresários e muitos atletas, tudo isto com as marcas desportivas e os organizadores à mistura…»
Projeto de Di Maria
Julien Di Maria, 35 anos, é o representante da Adidas em Iten. Nasceu em Paris e estabeleceu-se no Quénia há já alguns anos, como diz a A BOLA: «O desporto trouxe-me até Iten e a vida manteve-me aqui. Fui um bom júnior e sempre me fascinou o atletismo do Quénia. Depois, meti-me num projeto de arranjar sapatilhas e equipamentos em França e trazê-los para escolas com atletas quenianos. O projeto começou a correr bem e, mais tarde, passei a trabalhar com jovens fundistas. Continuou a correu bem e fui contratado pela Adidas para ser seu consultor. Depois, pouco a pouco, construí uma rede de contactos e passei a ser treinador e agente de atletas. Estabeleci-me em Iten em 2017 e pouco depois conheci a minha futura mulher e por cá fiquei. Amo o Quénia, porque me deu tudo.»
«O Kechei Center começou a crescer por volta de 2021», esclarece Di Maria. «Não havia aqui nada, era apenas um terreno vazio. Tivemos a ideia de fazer aqui um centro de treino para a minha mulher [Joan Chelimo] e, mais tarde, começámos a pensar que talvez fosse interessante abrir o centro para outros atletas, não só quenianos. Em julho de 2023, finalmente, o centro estava concluído», explica, sorridente.
Havendo diversos centros de treino ligados a algumas das mais importantes marcas desportivas, haverá rivalidade entre os diferentes centros de treino? Di Maria assegura que não: «Acho que foi melhorando com os anos. Agora, em 2024, todos estamos mais maduros e todos os grandes agentes falam uns com os outros. Claro que, por vezes, há competitividade por estarmos no desporto, mas tudo se ultrapassa».
High Altitude Training Center
Lornah Kiplagat, 49 anos, foi campeã do mundo de corta-mato (2007) e de meia-maratona (2008), venceu as maratonas de Roterdão, Amesterdão e Osaka e foi recordista do mundo de 20 km e meia-maratona. No início do século XXI, juntamente o marido, o neerlandês Pieter Langerhorst, fundou o High Altitude Training Center, talvez o mais europeu de todos os que existem em Iten e que dispõe de piscina e de pista sintética que pode ser utilizada pelos seus hóspedes. «Somos autosuficientes, pois tudo é plantado e criado por nós, todo o tipo de alimentos que fornecemos aos nossos hóspedes, de verduras a frutas, é nosso. Não recebemos apoio financeiro do governo ou de qualquer empresa. Estamos, sim, a tentar criar um fundo para obter energia de forma alternativa, como a solar ou a eólica, porque gastamos muito dinheiro com eletricidade. Temos vacas e, por isso, não precisamos de comprar leite. Espero que daqui a cem anos, em todo o Quénia, mais pessoas tenham as mesmas ideias, os mesmos objetivos», diz-nos Lornah junto à bela piscina do centro.
Relativamente a potenciais rivalidades que possam existir entre os diversos centros, assegura que não está preocupada. «Vivo uma vida tranquila com o meu marido. Temos este centro, frequentado por atletas de topo mundial, mas também por pessoas normais que gostam de correr. Vêm para cá para passear, para se treinarem e para socializarem. Não estou preocupada com aquilo que se faz ou não faz no Centro X ou Y. Quero apenas que o meu centro, o High Altitude Training Center, recolha boas opiniões de quem passa por ele; nada mais», explica a serena Lornah.
Que tem uma marca de roupa, não só desportiva, que é confecionada em Portugal. «Sim, sim, é verdade», confirma a sorrir. «Uma das linhas de roupa que temos é feita em Portugal e é muito boa, muito boa mesmo», acrescenta, antes de voltar a falar do nosso país. «Estive em Vilamoura, no Algarve, para me treinar. A comida, meus deus, era fantástica. E também sei dizer… obrigado. Conheço bem a Rosa Mota, é muito simpática. Vi-a em Valência antes do corona [virus]», adianta.
O famoso crosse ‘Discovery’
Uma das formas de encontrar grandes atletas é através do famoso cross Discovery, que se realiza anualmente, desde 1991, no Eldoret Sports Club, a 35 km de Iten. Milhares de atletas, alguns de elite e outros meras promessas, passam por lá, lutando pelos lugares de topo em diferentes categorias: 10km seniores masculinos; 8km mulheres seniores; 8km juniores masculinos; 6km juniores femininos; 2km meninos e meninas. O Discovery é uma das plataformas mais importantes para o surgimento de muitos dos maiores talentos do atletismo do Quénia ao longo dos anos.
«O Cross Discovery, do doutor Federico Rosa, é feito há muitos anos precisamente com essa ideia: descobrir talentos, potenciá-los e receber, em troca, dividendos. Constroem centros de treino, colocam lá os atletas a viver, dão-lhes o treino necessário, controlam-nos, metem-nos a correr em diversas provas e recebem parte do dinheiro que os atletas recebem. É uma espécie de viveiros de fundistas», diz-nos António Sousa. «Há ainda os treinos de fartlek, normalmente às terças-feiras, para os chamados desalinhados, aqueles que não estão ainda inseridos nos grupos de treino das grandes marcas», completa o treinador.
15 fevereiro 2024, 08:30
A BOLA esteve no Quénia à conversa com Samuel Barata
Lebres pagas ao quilómetro
Dias depois, de regresso à pista de tartan de Eldoret, para assistirmos a mais um treino de Samuel Barata e Samuel Freire, ladeados por Agnes Jebet, a recordista do Mundo de 10 km em estrada (prova mista), confirmamos que, no atletismo do Quénia, tudo serve para se fazer dinheiro. Na pista, correndo relativamente lento, um queniano com um gorro, apesar dos cerca de 30 graus, puxava por um outro atleta, provavelmente europeu ou norte-americano, com as pernas quase totalmente preenchidas com tatuagens.
De duas voltas e meia em duas voltas e meia, o queniano parava e esperava, sossegado, que o europeu/norte-americano completasse os 1000 metros, falando depois com ele, aconselhando-o sobre quais os melhores ritmos. «É uma lebre», explica-nos António Sousa. «Aqui, no Quénia, atletas de segundo plano que até têm boas marcas, ganham dinheiro a servir de lebres a atletas não-africanos. Podem puxar ao ritmo que for necessário, seja em pista, seja em estrada. Se alguém quiser contratar uma lebre destas para correr a 4 m/km, a 5 m/km ou a 4 m/km, basta contratar um deles. E pagar, claro».
Massagens quenianas
Os atletas quenianos de valia média (e por valia média entenda-se alguém que corra a maratona, por exemplo, em 2h15 ou 2h20) podem ganhar a vida a dar massagens desportivas a estrangeiros. A BOLA experimentou e as massagens são, de facto, diferentes. Isaac, queniano magrinho e simpático, começa por perguntar-nos se preferimos massagem forte ou mais ligeira. «OK, então vai perceber que as massagens quenianas são fortes», explica, enquanto, ao nosso lado, na mesma pequena sala, um atleta e uma atleta de origem queniana são igualmente massajados por dois quenianos, igualmente magrinhos e simpáticos.
A massagem termina e parece que temos o corpo de Kipchoge: ligeiro, arejado e bem esticadinho. Entregamos 1000 xelins, cerca de cinco euros, ao nosso massagista e saímos para a rua. Corremos 50 metros e depressa percebemos que, apesar de ligeiro, arejado e esticado, o corpo continua a ser o nosso e não o do bicampeão olímpico da maratona.