A BOLA NO QUÉNIA «Saber que consigo correr com atletas desta dimensão faz-me acreditar e sonhar»
Samuel Barata, melhor maratonista português da atualidade, está no Quénia a preparar as próximas provas e, a médio prazo, os Jogos Olímpicos de Paris. E cada vez se sente mais confiante para correr ao lado dos fundistas mais credenciados do mundo
São cinco e meia da manhã (duas e meia em Portugal Continental) e está escuro que nem breu. Além disso está tanto frio que os ossos devem estar congelados. Ou quase. Aqui e ali, ouvem-se grilos a cantar ou a bater as asas, não se sabe muito bem. A verdade é que são cinco e meia da manhã e estamos todos ainda com sono: Samuel Barata, Samuel Freire, o seu fiel companheiro de treino, António Sousa, treinador de ambos. E, retirando ramelas e praguejando interiormente, o jornalista de A BOLA.
A ideia é deslocarmo-nos cerca de 35 quilómetros, até Eldoret, para os dois atletas realizarem o primeiro treino de pista neste estágio no Quénia, num tartan já bastante degradado. Mal a pequenina comitiva lusa sai do centro de treino de Kechei, os olhos começam a procurar um matatu, o tal micro-autocarro que, recheado de pessoas, nos levará a Eldoret. «Quénia é isto», diz Samuel Barata, «mas é por isto que é tão fascinante treinar aqui».
Calor de Eldoret
E é verdade. Serão cerca de 40 minutos de viagem num matatu com 16 pessoas, o qual, já com boa vontade, receberia apenas dez. Porém, ao som de música e noticiários do Quénia, em língua inglesa e, aqui ali, acreditamos, com um pouco de dialeto local, a viagem faz-se. «Vai ser um treino difícil. Aliás, o primeiro treino de pista em altitude é sempre difícil. Espero que não esteja muito calor, talvez devêssemos ter vindo um pouco mais cedo», explica o melhor maratonista português de atualidade.
Em poucos minutos, dentro do matatu, o escuro desaparece, os ossos descongelam e deixamos de ouvir o cantar dos grilos (ou o bater das suas asas, sabe-se lá). Depressa começamos a sentir a temperatura a subir. Agora, após três treinos de corrida contínua em Iten, será tempo para Samuel Barata avaliar, com maior precisão, em que estado de forma se encontra.
3x5000 m
O programa é fazer um aquecimento de quatro ou cinco quilómetros e depois, na pista de Eldoret, executar três séries de 5000 metros: três vezes 12 voltas e meia à pista. A um ritmo aproximado de 3.10/3.15 minutos por quilómetro e com um intervalo de 200 metros a trote. Ou seja, cerca de um minuto. Samuel Barata correu a maratona de Valência no início de dezembro (2h.07.35), seguiu-se a recuperação da lesão que o apoquentou nas semanas anteriores à prova, depois vieram as festas de Natal e de fim de ano e, já em 2024, algumas gripes e constipações.
O treino começa. A temperatura vai, progressivamente, aumentando. Samuel Barata começa o treino ao lado de Samuel Freire, mas vai terminá-lo sozinho. Pelo meio, na pista de 400 metros de Eldoret, vai ultrapassando uma série de atletas: quenianos e não quenianos, craques e não craques, homens e mulheres. António Sousa, seu treinador, vai gritando os tempos de passagem, ao mesmo tempo que o vai advertindo: «Mais devagar, está muito rápido.»
Boas sensações
Ao fim de 22/23 quilómetros, contabilizando aquecimento, séries, intervalos ativos e pós-treino, Barata admite: «Sessão durinha.» A seguir, já com a respiração quase normalizada, explica o treino mais em detalhe: «A primeira semana em altitude é sempre complicada, pois ainda tento perceber como estou e quais as sensações que vou tendo. Estive aqui em novembro, sei o que é treinar-me a 2400 metros de altitude, mas, pelo meio, corri uma maratona, houve a recuperação e, por isso, há sempre alguma expectativa. Foi durinho, mas, felizmente, correu muito bem. Três vezes 5000 metros a ritmo de 3.07/3.10 por km e tive boas sensações. O facto de este primeiro treino de pista em altitude me ter corrido bem, dá-me confiança para o resto deste estágio. Estou satisfeito e confiante para a dureza que vão ser os próximos treinos. Serão duas semanas e meia de muito trabalho e... vamos a isso», esclarece o fundista do Benfica.
Calor de Paris
O calor parece não ter afetado Samuel Barata. Nem sequer a altitude. «O treino foi feito com temperatura a rondar os 30 graus. Levantámo-nos por volta das cinco da manhã, mas, mesmo assim, com a viagem de Iten para Eldoret, quando o treino começou já estava muito calor. Acabámos à nove e pouco e já está muito, muito, calor. É muito difícil correr distâncias longas com 30 graus e a 2400 metros de altitude, mas é muito melhor do que estar a treinar-me na Europa, com frio e chuva. Além disso, como nos Jogos Olímpicos de Paris vai estar, decerto, muito calor, é bom ir-me ambientando», adianta.
Solidão
A maioria dos 15 quilómetros (3x5000 m) em pista foi feita sozinho. Sem ajuda de quenianos ou europeus, até porque Samuel Freire, a meio da sessão, alterou o programa inicialmente previsto. Acabou por ser um treino algo solitário: «Há muitos europeus a treinar-se em Iten e é sempre bom ter alguém para treinar e conversar. Assim, acabei por fazer o treino apenas com o Freire. Mas também é bom para a parte mental treinar-me sozinho, pois numa maratona, quando ficar sozinho, já estarei habituado. É bom correr sozinho porque nos fortalece mentalmente», esclarece o atleta, de 30 anos.
Trabalhar o 'core'
Treino de pista concluído, regresso a Iten. Almoçar, descansar um pouco e, ao final da tarde, ida ao ginásio. Samuel Barata e Samuel Freire executam, durante cerca de uma hora, diversos exercícios de fortalecimento muscular. «Este trabalho é muito importante», diz o primeiro. «Convém sempre fortalecer o core [lombares, pélvis, abdominais, períneos e quadris], pois ajuda muito nas corridas longas», avança Barata. O regresso ao Centro Kechei é feito a pé, sossegadamente, sem esforço.
O treino longo
O treino de sábado de manhã, previsivelmente durinho, começa a ser preparado na sexta-feira. O chamado treino longo de fim de semana será feito na companhia de alguns dos mais fortes fundistas mundiais, a maior parte treinado pelo famoso Renato Canova: Amanal Petros (Alemanha, 2h.04.58), Abraham Tadesse (Suíça, 2h05.10), Mehdi Frère (França, 2h.05.43), Erick Kiptanui (Quénia, 2h.05.47), Shokhrukh Davlatov (Uzbequistão, 2h.07.02), Samuel Barata (Portugal, 2h.07.35), Emile Cairess (Inglaterra, 2h.08.07), Phil Sesemann (Inglaterra, 2h.08.49), Daniele Caimmi (Itália, 2h.08.59), Byambajav Tseveenravdan (Mongólia, 2h.09.03) e Nelson Ccuro (Peru, 2h14.57). Quanto dinheiro pagariam os organizadores das maiores maratonas do mundo para ter este lote de atletas? Muito, decerto.
‘Trrr-trrr-trrr-trrr’
E é impressionante ver, de fora, numa carrinha, um treino longo de 37 quilómetros corrido em pouco mais de duas horas. O som dos sapatos dos 30/40 atletas, quenianos, europeus, americanos e asiáticos, a bater no alcatrão, impressiona: trrr-trrr-trrr- trrr-trrr-trrr-trrr-trrr-trrr. A carrinha que acompanha os atletas, onde vai António Sousa, treinador de Samuel Barata, está cheia de garrafas de abastecimento que serão entregues, uma a uma, aos atletas mais poderosos e cedidas por estes a todos os outros. Há quem tenha programado completar os 37 quilómetros; outros irão até aos 30 km; outros, como Samuel Barata, farão 25 quilómetros. Sempre colado aos da frente, mas sempre atrás, pois seria deselegante para quem é convidado para estar neste grupo, querer liderá-lo e impor determinado ritmo.
25 km a 3.20/km
No final do treino daqueles que fizeram os 37 quilómetros, já refeito dos 25 km corridos em 1 hora e 23 minutos, sensivelmente, Samuel Barata traçou para A BOLA a importância deste tipo de treinos: «A minha ideia era fazer apenas 25 quilómetros. Os mais fortes estão numa fase mais adiantada da preparação e eu estou ainda a começar, pelo que 25 km é muito bom. Poderia ter ido até aos 28 ou 30 km, mas achámos, eu e o António, que não seria benéfico estar a forçar. Estar inserido num grupo de treino destes é impressionante. Somos todos rivais nas provas, mas aqui somos amigos que estão todos à procura de um sonho. Saber que consigo correr com atletas desta dimensão faz-me acreditar e sonhar. Correr 25 km a 3.20/km é muito bom. Estou satisfeito. O treino está feito, estou adaptado à altitude, agora há mais trabalho pela frente.»
Sonhos
A pedido de A BOLA, Samuel Barata projeta os sonhos a curto e médio prazo: «Há sonhos e sonhos, mas, como costumo dizer, se é para sonhar, é em grande. Fazer um grande Campeonato da Europa e, se possível, ser medalhado. Depois, tentar os recordes nacionais dos 10 km e da maratona. Finalmente, sonhar em grande seria ficar no top-8 nos Jogos Olímpicos de Paris.»
Um ano em altitude
No dia seguinte, o maratonista do Benfica falou-nos dos benefícios dos treino em altitude: «Nos últimos anos e até 2021 fiz sempre pelo menos um estágio em altitude e, nos últimos dois, fiz sempre dois ou três anuais. Consegui marca para participar nos Jogos Olímpicos e acredito que estes estágios tiveram muito impacto. Tudo somado terei passado 52 ou 53 semanas em altitude. Ou seja, um ano. Tornei-me mais resiliente e dou ainda mais valor ao que eles, quenianos, conseguem. Por vezes nós, europeus, queixamo-nos de que não temos pistas e mais isto e aquilo e, quando chegamos ao Quénia, vemos as condições em que eles se treinam.»
Oxigénio
Que se sente quando se passa do nível do mar para a altitude de Iten (2400 metros) e que acontece quando se desce? Samuel Barata explica: «Quando se sobe, nota-se a falta de oxigénio, o qual, em corridas longas, é muito importante, fundamental até. A primeira semana é sempre de adaptação. Depois, quando voltamos ao nível do mar, a capacidade de resistência é maior. Corremos mais rápido e durante mais tempo.»
Agora é tempo de descansar. E depois voltar a repetir tudo: treino de pista, comer, dormir; treino longo, comer, dormir. É assim a vida de um fundista no Quénia.