A BOLA NO QUÉNIA «O treino dos quenianos é do mais simples que pode haver»
António Sousa, treinador de Samuel Barata, está entusiasmado com o trabalho em Iten; garante que o seu pupilo, se não houver azar, está no bom caminho
Ouvem-se gritos em todas as zonas da pista de tartan de Eldoret. Os atletas vão passando pela zona da meta e, à medida que passam, os treinadores dão-lhes indicações sobre o ritmo a que estão a correr. Escutam-se as mais diversas línguas, mas, sobretudo, inglês. Até que, quando Samuel Barata cruza a linha de meta, se escuta uma voz bem portuguesa: «Setenta e dois! Está rápido! Abranda um pouco, Samuel…»
A voz é de António Sousa, treinador de Samuel Barata. Não é uma figura muito conhecida do grande público, mas todos o conhecem no atletismo português. Treinou Domingos Castro e Paulo Guerra, por exemplo, no início deste século. Deu nas vistas, como atleta, quando em julho de 2005, em Lisboa, bateu os recordes nacionais de 25 000 m e 30 000 m em pista, com 1h.18.58,2 e 1h35.04,7, respetivamente.
Exposição à altitude
«Continua rápido, Samuel, mais tranquilo, mais tranquilo…», reafirma o treinador após mais uma passagem do atleta pela linha de meta, durante o treino de 3x5000 metros. No final da sessão, primeira de Barata em pista no Quénia, António Sousa avaliou o trabalho: «Chegámos há muito pouco tempo e estamos ainda em período de adaptação à altitude. Porém, correu melhor do que estávamos à espera, pois o Samuel andou um pouco mais rápido do que tínhamos programado. O que significa que ele está bem adaptado, até pela quantidade de vezes que já esteve em altitude e em Iten. Já teve uma quantidade suficiente de dias de exposição à altitude para ter uma adaptação relativamente rápida. Estamos contentes por podermos começar a trabalhar com maior intensidade, pois as provas que se aproximam requerem muito mais intensidade do que aquela que o Samuel teve na maratona de Valência.»
Treino de ‘threshold’
3x5000 metros com intervalo de 200 metros a trote, corridos com 30 graus de temperatura e a 2400 metros de altitude não é um treino fácil. O treinador de Barata explica o que está na base deste tipo de trabalho: «Provavelmente, este é o tipo de treino que mais tem possibilitado o grande boom de resultados em distâncias como a meia e a maratona. Chegámos a fazer este tipo de treino em Portugal nos anos 80 sem qualquer tipo de controlo, quando saíamos juntos para fazer corrida contínua e depois aparecia sempre alguém, mais “bem disposto” nesse dia, a colocar um andamento confortável, mas muito rápido. Os melhores faziam o treino a uma intensidade semelhante àquela que o Samuel aqui fez. Depois, a seleção ia sendo feita, com os menos fortes a ficarem para trás. É o chamado treino de threshold, em que se anda muito perto do limiar de lactato. É o treino fundamental para depois alcançar índices de resistência mais elevados para obter grandes resultados em provas internacionais.»
Intervalo? 60 segundos
As séries de 5000 metros foram executadas com intervalo relativamente curto: 200 metros a trote, o que dará cerca de 60 segundos de descanso. «Para um atleta como o Samuel e com os objetivos que temos a médio prazo, optámos por fazer este treino com intervalos bastante curtos. É mais do que suficiente para a resistência aeróbica que o Samuel possui. Foi um primeiro treino e, como nas próximas sessões a intensidade será aumentada, é natural que o intervalo passe a ser um pouco maior», explica Sousa, que ainda adianta: «Este treino deu-nos boas indicações para aquilo que aí vem; se não houver azar, está no caminho certo.
37 km a 3.15/3.20 km
O treinador explica ainda os benefícios deste treino de Samuel Barata ter sido realizado sob elevada temperatura. «Procurámos um clima com muito calor para que o Samuel trabalhe com condições aproximadas às que ele encontrará em Paris, nos Jogos Olímpicos. Não terá altitude igual a esta do Quénia, claro, mas não será um percurso plano. Será uma maratona extremamente difícil, física e psicologicamente.»
Dois dias depois, Samuel Barata fará um treino longo na companhia de alguns dos mais cotados maratonistas da atualidade: 25 quilómetros corridos em cerca de 1h23m. António Sousa, no final, fala, entusiasmado, do que acaba de ver: «Para quem, como eu, cresceu a presenciar as grandes provas e os grandes momentos do Carlos Lopes, da Rosa Mota e do Fernando Mamede, por exemplo, é impossível não ficar entusiasmado com este tipo de treino. É diabólico ver estes atletas correrem 37 km a ritmos de 3.15/3.20 por km e, no final, parece que acabaram de correr meia dúzia de minutos. É por momentos destes que adoro o que faço e que adoro o atletismo. O Samuel fez o que estava previsto: 25 km. Fazer mais poderia, nesta altura, ser prejudicial…»
O boom do Quénia
Mais tarde, instalados no Centro Kechei, António Sousa explica quando surgiu o boom do meio-fundo africano e queniano: «O boom tem alguma ligação a Portugal. Em 1981, no Campeonato do Mundo de corta-mato em Madrid, quando o Mamede ganhou a medalha de bronze, apareceu uma legião de etíopes nunca vista ao mais alto nível. A Etiópia tinha sempre um ou outro grande atleta, como o Yfter, por exemplo, mas nunca se vira tamanha densidade de atletas de top. Quatro anos depois, no Mundial de Lisboa, toda nos lembraremos, pelo menos os da minha geração, daquela multidão de africanos atrás do Carlos Lopes, quando este se sagrou tricampeão do Mundo.»
A meio dos anos 80 do século passado, os europeus ainda não tinham descoberto os benefícios da altitude, nem tinham passado a treinar-se no Quénia. «O primeiro atleta que me recordo ter vindo treinar-se em altitude foi Dieter Baumann, um dos alemães que, na célebre final de 5000 metros dos Jogos Olímpicos de 1988, em Seul, passou o Domingos Castro nos últimos metros e que, quatro anos depois, foi campeão olímpico em Barcelona. Terá sido ele o pioneiro, entre os europeus, a vir para o Quénia treinar-se em altitude.»
Glóbulos vermelhos
Em termos práticos, que consequências tem a altitude na fisiologia dos atletas? «Provoca uma agressão no organismo e este tem de reagir ao ar rarefeito. E reage produzindo mais glóbulos vermelhos. Mais glóbulos vermelhos, mais transporte de oxigénio no sangue, mais geração de energia no músculo. Ou seja, tudo junto, mais resistência em provas longas», explica António Sousa.
Agora, porém, o plano de treino em altitude é diferente daquele utilizado até há umas décadas. «Sim, nada a ver. Durante muito tempo, talvez por razões económicas e sociais, os atletas iam para a altitude apenas imediatamente antes de uma grande competição. Era um erro enorme. O atleta estava habituado a determinadas condições de treino e, de repente, antes de uma grande prova e em período final de preparação, era retirado do seu ambiente e da sua zona de conforto e colocado num espaço totalmente agreste. Dificilmente poderia correr bem. Essa metodologia está desatualizada e não faz qualquer sentido. O que interessa agora é a exposição total anual à altitude», esclarece o treinador.
Viren, Zatopek e Mimoun
Há algumas décadas, Carlos Lopes foi campeão olímpico, campeão e recordista do mundo e Fernando Mamede foi recordista do Mundo. Sem treinos em altitude. Continua a ser possível ser atleta de top mundial sem recorrer à altitude? António Sousa nega essa possibilidade: «São dois atletismos completamente diferentes. Os finlandeses, anteriores ao Lasse Viren, conseguiram excelentes resultados sem treinos em altitude. Emil Zatopek e Alain Mimoun, nos anos 50, conseguiram-no também, tal como muitos outros atletas, entre eles alguns portugueses, nos anos 80 e 90. Hoje, porém, o atletismo é muito diferente e basta ver a posição que esses atletas têm agora nos rankings mundiais. A densidade de grandes resultados mundiais, quer no topo, quer a meio, nada tem a ver com a dos anos 80 e 90.»
Uns segundos de pausa e António Sousa continua a explicar os benefícios de treinar em altitude e, sobretudo, no longínquo Quénia: «O que tem muito influência, sobretudo para os atletas do mundo ocidental, principalmente por influência das redes sociais, é o foco. É muito difícil para um atleta de alto nível não ter muitas distrações no local onde habitualmente vive. E não falo na possibilidade de, aqui e ali, se ir divertir. Têm muitas solicitações, o que até pode ser bom, pois significa que a sociedade o reconhece. Porém, pode retirar-lhe o foco para treino e recuperação. Assim, ir para a África profunda, onde não há absolutamente nada para fazer, possibilita-lhes dedicarem-se aquilo que é verdadeiramente importante: treinar, comer, dormir; treinar, comer, dormir. Treinar em grupos onde estão alguns dos melhores do mundo é um desafio diário que obriga a uma superação constante, fundamental para a obtenção de resultados de excelência. Novamente é possível fazer um paralelo com o que acontecia em Portugal nos anos 80/90.»
'Bodyshape' dos quenianos
Qual o peso da genética nos grandes resultados que os quenianos alcançam nas provas de fundo? António Sousa diz que «terá sempre algum peso», mas tenta não perder demasiado tempo a perceber a questão: «Essa explicação não nos interessa, pois nada podemos fazer contra ela. Nunca poderemos transformar o chamado bodyshape de um europeu no bodyshape de um africano. Mas vemos que um europeu pode fazer, mediante as mesmas condições de treino, resultados relativamente semelhantes aos africanos. Agora temos, sim, um gap enorme para recuperar. Os africanos já se treinam assim desde os anos 70 e 80…»
Teorias da NASA
Criou-se em torno dos fundistas quenianos a ideia de que o seu treino é muito complexo. António Sousa desmistifica esta tese: «O treino deles é muito simples. Aliás, é o mais simples que pode haver. Os ocidentais têm tendência a complicar o que é simples, mas o gesto na corrida é o mais básico que existe. Não vale a pena pensar em teorias da NASA para explicar o treino dos quenianos, O Quénia não tem as condições que existem no mundo ocidental. No laboratório da Red Bull na Áustria, por exemplo, monitorizam os atletas de todas as maneiras e feitios. Nada disso é feito no Quénia, aqui é o puro darwnismo, a seleção natural, aplicado ao ser humano. Todo o queniano quer correr para melhorar a sua condição de vida. Aconteceu o mesmo em Portugal, com o sucesso dos melhores atletas portugueses, como Carlos Lopes, Rosa Mota, Castros, Mamede, António Pinto, Regalo, António Leitão e muitos outros.»
A lufada de ar fresco
A finalizar, António Sousa falou da recente melhoria dos resultados de meio-fundo e fundo em Portugal: «Até há cinco anos, eu próprio era cético relativamente aos resultados dos portugueses, por achar que ninguém tinha as condições físicas e psicológicas ideais para o alto rendimento. Treinei o Domingos Castro e o Paulo Guerra, fui treinado pelo Carlos Lopes, treinei muito com o Mamede e sempre tive noção do que era necessário fazer para um atleta chegar ao alto nível. E, entre 2010 e 2017, por exemplo sentia-se que era muito difícil conseguir grandes resultados. Depois, apareceram o Isaac Nader, a Mariana Machado e mais alguns, como o Nuno Pereira, o Alexandre Figueiredo, Rúben Amaral, Etson Barros, Rogério Amaral ou o Duarte Gomes, por exemplo. Podemos dizer que há, de facto, uma lufada de ar fresco. Não falo em recordes do mundo nem em medalhas em grandes competições, falo apenas em grandes resultados.»
Quais as possibilidades, a curto e médio prazo, de Samuel Barata? «Para já, é um privilégio poder acompanhar um atleta com o talento e a personalidade dele. O Samuel faz-me sonhar e acreditar que é possível Portugal voltar a ter atletas a correr ao nível daqueles que foram os meus ídolos nos anos 80 e 90. Ganhar medalhas ou bater recordes são ainda coisas do outro mundo para os portugueses e ainda tenho alguma dificuldade em sonhar a esse nível. Basta dizer o seguinte: a maratona dos Jogos Olímpicos pode ter uns dez atletas abaixo das 2h04 e três abaixo das 2h.02. O Samuel tem 2h.07.35. É outro mundo…»