Viseu e na alindada Região de Vinhos do Dão, Nuno Bico, ex-corredor forçado por um problema de saúde a retirar-se da competição aos 25 anos, em 2019), é um exemplo e inspiração para todos no dia que tiverem de abraçar outra carreira para o sustento dos seus após os verdes anos da vida: um problema na artéria ilíaca obrigou-o a desistir da paixão, mas o beirão, hoje com 29 anos, é exemplo de resiliência e perseverança na luta pelo inenarrável prazer de viver e nos reinventarmos a cada dia da existência. Campeão nacional de sub-23 em 2015, antigo corredor da Burgos (Espanha) e Movistar – entre outras equipas -, respirou fundo quando ouviu o diagnóstico dos médicos, e sentiu o chão a fugir sob os seus pés, como confessou a A BOLA o antigo craque das duas rodas. Levou o seu tempo a reerguer-se, mas levantou a cabeça, lambeu as feridas e está como o aço: agarrou-se com unhas e dentes ao que não se fabrica, terra. Na cidade que esta quarta-feira é, a partir das 15h21 m, palco da partida da Volta-2023, com o arranque do primeiro dos competidores para o prólogo no circuito citadino de 3,6 km em Viseu, encontrámos um homem de bem com a vida, que investiu na formação académica para continuar o negócio da família, pelo qual se apaixonou com o recolhimento forçado pela pandemia do Covid-19 «Não sabia a estória do Júlio Iglésias [guardião do Real Madrid forçado a abandonar o futebol aos 19 anos, para dar… numa referência da música]. Mas fico feliz de ter dado a volta por cima. Era uma dor persistente no pé esquerdo, quando assentava, depois apanhava a perna. Incomodava. Chegaram a dizer-me que era psicológico. Tive de responder ao médico ‘doutor, posso ser e ter muita coisa, mas não estou maluco’», recorda Nuno Bico, de 29 anos, sobre a decisão que ninguém quer tomar, mas que teve de fazer numa altura em que as estrelas ainda despontam no firmamento das duas rodas. A ‘volta olímpica’ em Madrid’ Foi em 2017. O «problema na artéria ilíaca descoberto através de um exame extremamente invasivo, introduziram-me iodo radioativo no organismo, o meu corpo, artérias e veias, no ‘scan’, brilhavam como autoestradas num mapa digital», recorda. Tinha remédio, foi o diagnóstico clínico: cirurgia. Fê-la. Mas ano e meio depois, em plena Vuelta-2019, os limites da dor deixaram-no KO. «Quis desistir, mas era preciso à equipa e aguentei até ao fim, como me pediram, incapaz de me esforçar muito já. Tanto que, no último dia, nas voltas ao circuito citadino de Madrid, fui ficando para trás e quis correr sozinho. Ainda hoje não sei se fui o último nessa derradeira etapa, mas os aplausos que ouvi, o apoio das pessoas, são memórias que gravei e saboreei para recordar sempre», revela-nos um campeão de determinação. ‘Ler’ as uvas pela cor das folhas Após «uns meses meio ‘anestesiado’, a entreter-me com tudo» e passada a fase de questionar-se porque este infortúnio lhe batera à porta, empurrado pelo amor de avô e pai à terra, com a pandemia do Covid-19 e as restrições à movimentação geral pelo meio, virou-se para São João de Lorosa, a escassos cinco quilómetros de Viseu. E foi na Quinta da Turquide, propriedade da família, pejada de pomares de macieiras e vinhas – uvas brancas e tintas – que tirou «um curso intensivo de 12 horas por dia» a podar, a ganhar amor à terra, a perceber por que pai e avô mantinham o ‘cantinho’ familiar alindado com devoção transgeracional. Com indisfarçável orgulho e um sorriso de quem abraçou de imediato uma nova causa – em setembro de 2019 arrumou a bicicleta, em outubro já estava inscrito no curso de Gestão Hoteleira, na Universidade do Porto, que já concluiu – explica à reportagem de A BOLA, enquanto passeamos pelos 16 hectares da propriedade, que mesmo quem passa na estrada pode, ainda que de longe, destrinçar estar na presença de uvas brancas ou pretas. «A folha da branca fica amarelada, mas não vermelhas, a da uva para tinto vai até ao ‘laranja’ e ao encarnado, no outono, depois da vindima», diz quem espera «de coração» que o amigo Frederico Figueiredo (Glassdrive-Q8-Anicolor) vença a Volta mas que «pela razão» reconhece ser Maurício Moreira «o mais forte candidato… mas na teoria». Vizinho de João e Hugo Félix, cujos pais habitam alguns quarteirões abaixo, nas Arrancadas - «são muito mais novos do que eu, o João e o [irmão] Hugo, mas isto aqui são meios próximos, toda a gente se dá bem e conhece, lembro-me de que o João, mesmo muito mais novo do que eu, tinha muito jeito para o futebol, e os pais sempre muito simpáticos, agora é o viseense mais famoso de Portugal, não?», questiona-nos -, é com um sorriso que, entre chamadas e mensagens no telemóvel, despacha ‘paletes’ de caixas de vinho para todo o país e até estrangeiro, após formação tida também em Bordéus (França). Quando beber um Quinta da Tarquide tinto ou Vidente, as marcas da ‘pomada’ que ali produzem, lembre-se que foi preciso uma agrura da vida para a metamorfose de um campeão das duas rodas se virar para o granítico solo do Dão e das vinhas cuidar com zelo diário para que o néctar dos deuses seja imagem e referência nacional. Só dava assim. A prova de que a vida nos testa com uma agrura, mas que as lamúrias, tal como as tristezas, não pagam dívidas: o melhor de nós estará, sempre, por se revelar, nesse amanhã desconhecido que revela os campeões da vida. Os que se levantam quando caem, e nos inspiram e mostram que uma batalha perdida não é a derrota na guerra, confirmando os adágios de o saber nunca ocupar lugar e nunca ser tarde para aprender, com o engenho aguçado pela necessidade. A equipa de reportagem de A BOLA na Volta a Portugal viaja numa viatura gentilmente cedida pela Atitude Car.