Em Chão de Vento, no concelho da equipa Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua e do saudoso Pedro Silva e filho Xavier – vencedora, com o venezuelano Leangel Linarez, das 1. e 2.ª etapa da Volta, em Ourém e Vila Franca de Xira, e o camisola amarela -, está instalada a única escola que prepara cães-guia para deficientes visuais no nosso país poderem atravessar em segurança uma estrada e alivar as agruras do dia a dia de quem tem tantas mais limitações a tornear: a fila de espera de três anos dos potenciais ‘donos’ resume a carência de patudos face à procura. A Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV) presta um serviço único a Portugal e aos mais de 160 mil cegos e largas centenas de milhar de cidadãos com deficiência visual em Portugal: educa cães para acompanhar no dia a dia aqueles para quem atravessar uma rua ou circular é, por força das contingências do destino, desporto radical diário. Um trabalho compensador, a cargo de quatro educadores – Vítor Costa, Sabina Teixeira, Marta Salomé e Gil Coronha -, numa equipa presidida por João Pedro Fonseca e que têm em Nuno Gouveia e Filipa Paiva ‘pontas-de-lança’ no terreno do equilíbrio orçamental de uma escola única em Portugal e que custa «€460 mil a €500 mil/ano», com toda a despesa que quem teve ou tem patudos sabe de antemão que envolve. Ser uma IPSS [instituição particular de solidariedade social] ajuda, com a Segurança social a cobrir «54 por cento» do necessário, mais muito engenho a concorrer a programas da União Europeia, quotizações («€10/ano»), merchandising, doadores… o possível. Fundada a 30 de dezembro de 1999, a ABAADV irá celebrar as Bodas de Prata em 2024. Muito tempo percorrido desde o primeiro animal educado especificamente para ajudar invisuais, a Camila, ali conhecida como ‘Camilinha’. A pioneira foi uma exceção: os cães não podem ter nomes humanos comuns, não vá dar-se uma coincidência de terem nome de rainha de Inglaterra um dia mais tarde. Não se ouve uma mosca Fazem criação própria, têm sempre «quatro a cinco fêmeas» e «dois reprodutores», ativos que vão sempre sendo renovados para novas ninhadas. Têm um acordo com a federação francesa da especialidade, que congrega «13 a 14 escolas» análogas. E quando são precisos mais exemplares, vão lá buscar, aceitando ainda, pontualmente, ofertas de criadores. Em permanência, todos os dias, aprendem a arte de, em silêncio, de habituarem e afeiçoarem aos humanos, cerca de duas dezenas de animais. A estranheza do visitante, como a equipa de reportagem de A BOLA, é essa: não ladram, de tão bem-educados e ternos que já estão. O silêncio ensurdecedor do inesperado, quando esperávamos uma algazarra pegada. A maternidade, espaço próprio, parece anúncio de uma conhecida marca de papel: ainda ‘bolas de pelo’, com dois meses, de uma ninhada de 11, como A BOLA testemunhou, os sinais são filtrados pelo olho clínico dos ‘experts’ e aproveitam nem metade do grupo para o treino. São, depois, colocados em famílias de acolhimento durante um ano. Todos das raças Labrador, Golden, Retriever, Flatcoat ou cruzados entre si: as raças mais dóceis. «Estes cães não se querem nervosinhos, como os pastores alemães educados para farejar drogas nas malas nos aeroportos, querem-se bem tranquilos», explicou-nos Vítor Costa, que faz, como todos os educadores ali, «uns 16 a 18 km/dia». Após um ano, voltam à escola e aos tratadores por mais oito meses, num treino total que oscila entre «os 22 a 24 meses». Os candidatos a receber um cão-guia têm um longo ‘caderno de encargos’ a preencher. «Os cães nunca lhes são atribuídos: em 150 ou 250 que já saíram daqui, aconteceu uma vez termos de retirar um ao seu usufrutuário, devido ao comportamento deste último», explica o educador: não, não é treinador, nem professor, este é o termo. E se o educador Vítor Costa tem formação académica em Marketing, agora os novos vão a França tirar licenciatura – sim, existe, Sofia é a próxima já com as malas feitas para a formação académica – durante três anos. «Não sai barato». Quem quiser ter um cão para ver por si, é bom preencher os papéis o quanto antes: a lista de espera ronda os três anos. «Sim, é maior do que esperar por um carro encomendado, muitas vezes». Resume a escassez da oferta para tamanha procura. Provas dadas O ‘upgrade’ que ter um companheiro destes, de quatro patas, traz para quem verá pelos seus olhos, é atestado até no Mundo do Desporto. Carlos Lopes, o velocista com deficiência visual português mais consagrado nas grandes provas, vai no terceiro cão-guia ali ‘formatado’. «Teve o Gucci, o Rubi e o Cauet, sim». Também já tiveram um Cocas (como o sapo d’Os Marretas), e Miguel Vieira venceu há poucos dias no judo paralímpico com outro patudo dali saído, confirma Vítor Costa, que irá nos próximos dias à Madeira entregar um exemplar ao futuro usufrutuário - não ‘dono’ ‘de juris’, esse é sempre a ABAADV, única entidade certificada e avalizada internacionalmente no ofício do nosso retângulo à beira mal plantado mais as Regiões Autónomas da Madeira e Açores. «Somos uma IPSS, é complicado manter as portas abertas, mas temos conseguido manter um orçamento equilibrado. Isto não é para ganhar dinheiro, mas fazem-se milagres», confirma João Pedro Fonseca, o presidente da ABAADV e líder de uma equipa total de 14 pessoas a trabalhar numa sede cujas instalações, vistas da estrada, parecem um quartel de bombeiros no meio do verde. Vítor Costa, com 30 anos de experiência e mais de 50 cães-guia educados, não trocaria o seu emprego por nada. «Vê-se que tenho o coração cheio e os olhos brilham? Pois, sou feliz no que faço. Mas essa do ‘quem corre por gosto não cansa’, não é bem assim. João Pedro Fonseca dá uma achega. «Aqui, ajudam as águas de Penacova, as empresas de rações para animais, doações. Em França, todas as escolas estão… riquíssimas. Porque não há mais, se há tanta procura? Não é fácil manter isto, que não é um negócio. Olhe, veterinário, temos um protocolo com a Universidade de Coimbra. Um cão sai entre €18 a €20 mil» à escola, antes de ser «cedido gratuitamente» ao candidato aprovado, é a revelação de quem faz tudo pelos cães, ali educados «45 a 60 minutos por dia, e não vale a pena mais, não fixam», e que saem como pães quentes do forno ao ritmo possível… na ordem dos cinco por ano. A desobediência inteligente O mistério de o cão que tem em casa ladrar quando o seu automóvel ainda nem se vê do lar, sabendo que está a chegar, desvenda-o o ‘expert’ Vítor Costa: «o olfato deles é 30 mil vezes mais apurado do que o dos humanos». Portanto, cheiram-no a léguas. E a forma como os cães nos veem «são formas geométricas, ou circunferências». Com uma diferença para os toiros, que, nas toiradas, muitos pensam que investem espicaçados pelo vermelho da capa quando, na realidade, só o conseguem fazer a preto e branco e é o movimento que os faz marrar. «Os cães veem algumas cores. Mas não todas». Por isso, desmistificámos outra curiosidade que erradamente muitos presumem: os fiéis amigos que tantas vezes vemos a atravessar a passadeira com invisuais não sabem se o sinal luminoso para atravessarem a estrada está verde ou vermelho para os peões. Isso pera pedir a Lua. «O dono é que sabe. Mas o cão, se pressente um automóvel a aproximar-se, por exemplo os elétricos que pouco ou nenhum ruído produzem, finca pé e nega-se a atravessar. Sim, até nisso protege o seu ‘dono’. O cão é educado para o fazer: é a denominada desobediência inteligente. Um ‘upgrade’ do ‘estado a que isto chegou’ que, na noite de 24 de abril de 1974, levou Salgueiro Maia a vir de Santarém a Lisboa.