Volta a Portugal Movidos pela água e pela falta dela no paraíso transmontano
Um paradoxo fácil de descodificar em Trás-os-Montes e em particular na zona do Baixo Barroso, da barragem do Alto Rabagão e na localidade palco da chegada da 7.ª Etapa da Volta, a transmontana e sedutora Montalegre, onde as gentes de um Portugal menos conhecido… mas paradisíaco, que diz não a saltos tecnológicos no escuro e se mantém arreigada aos valores da terra faz pela vida mas as atividades lúdicas e a paisagem são um sonho acordado digno de Van Gogh ou Claude Monet.
Padroeiro dos viajantes, como toda a caravana e comitiva desta Volta na qual a viatura da equipa de reportagem de A BOLA assinala já 2800 km galgados, São Cristóvão, cuja imagem não faltava nas naus e caravelas dos Descobrimentos e navegadores, é por terras transmontanas, na Venda Nova, nome de unidade hoteleira que, com 46 anos (fundada em 1977) teima em resistir, com as suas duas estrelas e 25 quartos com vista para o Cávado e uma albufeira onde as gaivotas para os hóspedes pedalarem estão à beira da água, cujo nível, visível a olho nu nas margens, baixou drasticamente.
«Eram oito, mas não vale a pena, agora temos só duas. Desde que inauguraram a barragem da Caniçada, chupou a água toda, mas é aqui o sítio onde de produz a maior parte da eletricidade de Portugal. Mas a que preço? Veja esta desolação. De um dia para o outro, como pode ver, assim que a Caniçada começou a funcionar, baixou o nível da água nas margens dois ou três metros», diz-nos Sónia, que, com a irmã Catarina, gerem o oásis turístico no meio de uma serpente de curvas bordejada de água e verde por todos os lados, com vista para o Cávado e onde se ouvem os pássaros chilrearem.
Os custos da interioridade, pese embora os túneis do Marão e autoestradas, refletem-se no emprego que não há… e o que ninguém quer. «Já somos poucos. Olhe, à noite, então em cozinha, ninguém quer trabalhar, por aqui. E muitos vivem do rendimento mínimo garantido, ou rendimento social de inserção. Mas há procura, sempre houve. É uma pena se isto se perder. Já viu uma região tão linda como esta?», é o desalento de Sónia, de ofício professora, mas que arregaçou mangas para que o negócio da família, no concelho de Montalegre, não feche portas, abra falência… ou seja vendido a um grupo estrangeiro.
«E agora vem o lítio [exploração no concelho, já aprovada e que em breve se deverá iniciar, apesar da contestação]? Não queremos o lítio aqui, já tivemos a exploração de volfrâmio nas Minas da Borralha, chegou», vincou a nossa interlocutora, recordando a extração transmontana do minério que, segundo as crónicas, acabava moldado em tanques para Hitler.
Da depressão ao sorriso com escadotes
Poucos quilómetros de pulmões oxigenados adiante, num cenário de filme, surge a barragem do Alto Rabagão, com o seu paredão de dois km polvilhado de famílias, canas de pesca a postos colocadas sob o elevado muro… e escadote adereço indispensável para trepar, pois só lá do topo se vê a água e a fantástica albufeira.
«Antigamente havia muito peixe, agora os grandes comeram os pequeninos, mas ainda há. O quê? Carpas, trutas e o lúcio-perca, ao qual aqui chamamos Sandras. Ainda há por aí uns matulões, quer ver?», diz-nos Francisco Silva, septuagenário que acordou em Guimarães «às 4 da manhã» e fez a hora e meia até ao paraíso na Terra que é este local do denominado ‘Portugal profundo’ para a prática lúdica que pode, afinal, garantir o jantar da família.
«Mas o farnel veio cheio, que nunca sabemos se o peixe pica», diz-nos Leocádia Canelas, de 66 anos, a matriarca do animado povo que pelo que a água ainda dá não está nem aí para a Volta, enquanto exibe, com o orgulho, o fruto de meia dúzia de horas focados a ver se a linha e/ou o anzol se movem, um bom sinal.
«Mas isto do lítio e sua exploração, se avança, pode acabar com o sossego que é um património inestimável desta região. Tive amigos que trabalharam no volfrâmio, nos anos 30 e 40, na mina da Borralha, e nada de bom trouxe. Mesmo o peixe, há, mas há 20 ou 30 anos era muito mais. Oh amigo, mas não espalhe que isto é tão bonito e sossegado, ou amanhã cai tudo aqui e não tenho pesqueiro para assentar a cana, sequer [risos]», pede Francisco aos repórteres.
Sótão de estórias de uma Volta que, como bem disse Joaquim Gomes, «é o maior veículo promocional por excelência do Portugal menos conhecido», e já mostrava a um algarvio ou alentejano que só em sonhos poderia aspirar em visitar Trás-os-Montes um dia – se tivesse a paciência de guiar dias inteiros nas estradas do antigamente, poucas, más… e com viagens dez vezes mais demoradas do que hoje – que, como reza a melodia de ‘Coimbra menina e moça’ na voz imortal do fadista António Menano «não há terra como a nossa, não há no Mundo, outra assim».