Irmãos Deus: do ténis para os palcos principais de padel
Miguel e Nuno formam parceria há seis anos, mas só no último é que começaram a ter maior sucesso a nível internacional; depois de alguns meses separados e sem poderem competir juntos no circuito profissional, a dupla familiar já fez o primeiro torneio no P1 de Málaga
Há algo de contrastante que paira no ar do Oeiras Padel Academy. Entre os dois campos exteriores, banhados pelo sol de verão, um grupo de amigos junta-se para se refrescar após uma sessão casual de um desporto que conquista cada vez mais espaço no tempo livre de muitos portugueses. Mas nos campos interiores, o barulho ensurdecedor da bola a bater nas paredes é impossível de ignorar, onde outros grupos vivem mais intensamente a modalidade. Foi aí que os irmãos Miguel e Nuno Deus nos receberam, na sua segunda casa, onde treinam para poderem subir no ranking do principal circuito profissional, já depois de se destacarem como a melhor dupla portuguesa masculina.
Contam-se já seis anos, sensivelmente, desde que os dois irmãos trocaram de raquetes de ténis para as de padel, uma mudança que culminou com o título nacional, mas também com troféus internacionais, uma vez que, surpreendentemente, como revelaram, ganharam o torneio FIP (Federação Internacional de Padel) de Barcelona, evento do circuito paralelo ao principal, considerando este «o melhor triunfo até hoje». Foi o quarto torneio que ganharam, no espaço de três semanas, e depois de quatro meses separados, devido a uma lesão no joelho direito de Nuno.
Depois desse regresso, a viver um conto de fadas, os irmãos viram a parceria ser momentaneamente interrompida, isto porque, como eram 134.º e 167.º da hierarquia masculina, em junho, não tinham ranking suficiente para entrarem os dois juntos nas provas, uma vez que o que conta é a posição combinada que ocupavam.
«Para poder entrar nesses primeiros torneios do Premier Padel, joguei no Catar e na Arábia Saudita», disse Miguel Deus, o irmão mais velho. «Tive de procurar parceiros dentro do ‘top-100’, o que já é uma diferença bastante considerável. Foi difícil, mas lá está, um jogador 'top-100' aceitar um de 'top-180', que era o meu caso, é indicativo que confiam em nós», reforçou.
Assim, enquanto Nuno recuperava de lesão, Miguel quis continuar a competir e estreou-se nos maiores palcos da modalidade com parceiro diferente, em dois torneios – um deles equivalente aos Grand Slam no ténis -, também com o objetivo de começar a arrecadar o máximo de pontos possíveis para entrar regularmente nas principais competições. E foi isso que Nuno também se viu forçado a fazer, para duas provas sul-americanas, na Argentina e no Chile.
Porém, apenas um mês depois dessa separação ganharam pontos suficientes para se juntarem no P1 de Málaga e continuarem o sonho de cimentar a posição entre os melhores do mundo, em família. Sempre em família.
No início era o ténis…
O irmão mais novo, Nuno, admitiu que desistiu do ténis, em 2018, depois de 15 anos a competir, por estar «cansado a nível mental» da vida profissional, decisão que foi feita meses após se tornar campeão nacional absoluto de pares, ao lado de Bernardo Saraiva. «A nível de singulares, [a carreira] não estava a correr bem. Em pares, sim, estava a ter algum sucesso», contou, referindo-se às provas Future, organizadas pela Federação Internacional de Ténis [ITF], que venceu juntamente com tenistas ainda hoje em atividade, como é o caso de João Domingues e Francisco Cabral, atual número um português em pares. «Começa a haver alguma frustração, alguma dúvida e, por isso, comecei a ficar cansado da competição no ténis», justificou.
No caso do irmão mais velho, Miguel, a transição não se deu por saturação e foi feita de «consciência tranquila». «Eu claramente sentia que não tinha nível suficiente [no ténis]», admitiu. Se em 2017, viu Nuno a erguer o troféu de campeão nacional, Miguel escrevia no mesmo mês, em outubro do mesmo ano, que «teve os três segundos de fama», quando apareceu na televisão a festejar um golo do Sporting contra a Juventus, em Turim, na fase de grupos da Liga Europa.
«Na altura tive esses três segundos de fama a ver o Sporting, porque no ténis não era nada do outro mundo. Agora quero acreditar que já tive mais uns segundinhos e que as coisas estão a correr melhor», sublinha.
Hoje, o tempo de reconhecimento é, seguramente, maior e tudo começou… com uma entorse no pé, quando tinha já abandonado a vida competitiva e numa altura em que era treinador de ténis de camadas jovens. Para tratar da lesão, o luso de 31 anos foi tratado por um fisioterapeuta, cuja clínica estava inserida num clube de padel, que era dirigido por... um ex-treinador de Miguel Deus.
«Num dia [de tratamento] cruzámo-nos, falou comigo e disse que estavam a precisar de treinadores. Na altura, não vou mentir, em termos financeiros, a proposta era muito mais aliciante do que tinha no ténis», revelou, acrescentando que, o facto de ter dois dos seus melhores amigos a jogar, influenciou a sua decisão de fazer a mudança. Estávamos em 2018, quando Miguel estava há dois anos sem competir e, por isso, queria tentar a sorte em torneios ao fim de semana.
«Senti que no ténis não fui nada de especial e não me satisfez. O Nuno foi um bocadinho melhor e todo o cansaço que ao início ele sentia, eu não tive. Passei a minha vida inteira a competir. Entrei no desporto, comecei a jogar torneios e a perder jogos que não gostava. Todo esse espírito de competitividade que temos, é natural. Quis começar a treinar, a investir um bocadinho mais, a ir para as provas para não perder na primeira ronda, para chegar às meias-finais ou a finais… Passinho a passinho, fui começando», sublinhou.
Irmãos Deus qualificaram-se para o quadro principal do P1 Málaga
Mas Nuno focava-se nos estudos, procurando terminar o curso de Gestão. Relutantemente, de vez em quando, cedia à insistência do irmão mais velho, que lá o arrastava para algumas provas.
«Sempre nos demos relativamente bem a jogar, por isso pensámos: ‘se calhar isto no padel também pode correr bem’». Foram três anos que, para Nuno, «serviram para voltar a ganhar o bichinho da competição. No ténis, «sabia todas as semanas que ia perder». Agora era diferente. Se, porventura, perdesse, tinha do seu lado do campo um parceiro, que vivia as derrotas (e vitórias), algo que admitiu ser difícil de lidar no ténis.
«Entretanto, fui terminando a faculdade e quando acabei disse ao Miguel: ‘já estamos a começar a investir mais, estou quase a acabar, quando acabar vamos dedicar-nos a isto a 100%’ e assim foi», completou.
«Até podiam jogar de calças de fato de treino, se fosse preciso. Não havia história nenhuma»
Algo que este desporto também trouxe aos irmãos Deus, foi o facto de poderem representar a Seleção Nacional. «São sentimentos muito diferentes. Uma coisa é a nossa dupla, enquanto projeto (familiar, quase) e outra coisa é a Seleção. Estamos a jogar por um grupo, por um país», explica Miguel.
Em 2012, a possibilidade de enfrentar as melhores equipas, como a da Espanha ou Argentina, era a ocasião, porque o resultado era já certo: a vitória da Espanha, que desde os anos 80 deram os primeiros passos na modalidade. «Jogavam de calças de fato de treino se fosse preciso, não havia história nenhuma», brinca Nuno. Mas no espaço de 12 anos, apesar do domínio dos irmãos ibéricos, os encontros são já disputados e, pelo menos, os rivais já «têm de suar um bocadinho».
Em 2022, Portugal esteve muito perto de uma medalha inédita no Mundial da disciplina, quando chegou às meias-finais depois de afastar o Brasil «que na altura era, destacadamente, a terceira potência mundial». Um triunfo «único», como descreveu Miguel Deus.
«É capaz de ter sido dos momentos mais emotivos que tive em toda a minha vida de desporto, sem dúvida alguma. Representar a Seleção é especial. Cantar o hino, todos juntos, depois de uma vitória daquelas – e nos dias seguintes -, com estádio cheio, foi algo que nunca nos tinha acontecido. No ténis, nunca tínhamos passado por uma experiência assim e passar por isso é indescritível», reforçou o irmão mais novo, que relembrou que Portugal foi afastado nas ‘meias’ pela poderosa Argentina e, na batalha pelo bronze, caiu perante a França, adiando o sonho da conquista de uma medalha. Mas algo é certo, os outros «já não jogam de calças de fato de treino.»
Talvez por isso, e sem os sul-americanos pelo caminho, as aspirações para o Europeu, que decorrem entre 22 e 28 de julho em Cagliari, Itália, sejam claras: um lugar no pódio.
«Temos qualidade para chegar à tal final com a Espanha. Não vou dizer que vamos ganhar ou que temos a ambição de vencê-los. Claro que quando entramos para um jogo queremos ganhar, mas sabemos que a Espanha compete num mundo à parte», explicou Miguel Deus.
Ficar em Portugal, com a tradição ali tão perto…
Não é por acaso que Miguel e Nuno Deus tenham migrado do ténis para o padel. Afinal, como nos contam, a maior parte dos jogadores profissionais portugueses tem como background a vida tenística. Porém, isso pode não ser uma vantagem, porque, ténis e padel são desportos diferentes e exigem estratégias diferentes. Tal como o próprio nos contou, Nuno confessa não saber o que é «melhor»: estar mais à vontade com uma raquete na mão, aprendendo a técnica mais facilmente, mas estando mais relutante a aprender as táticas do desporto, ou vir sem vícios do ténis, ou seja, mais recetivos a jogar com as paredes do campo, mas com o revés de demorar mais a dominar a técnica.
Situação bem diferente da que acontece no país vizinho – e noutros países sul-americanos, como a Argentina -, com uma «cultura de padel» já estabelecida e que ajuda a explicar o domínio espanhol, com os sul-americanos logo atrás. «É uma questão de tempo e de história», explica Nuno, que conta que estes países começaram a formar escola «desde os anos 80 ou 90», o que significa que há jogadores que começam a praticar esta disciplina «desde miúdos».
A discrepância é tanta que é possível ter, no circuito profissional, encontros de jogadores que começaram desde cedo a praticar a modalidade com vista a seguir uma carreira profissional, com outros que há 10 anos, desconheciam da existência do mesmo.
É isso que leva vários atletas a mudarem-se para Madrid, procurando absorver conhecimento, onde também têm opções para estabeleceram contacto com outros competidores e treinadores. Oportunidades que não têm no país natal. Miguel e Nuno reconhecem as vantagens de fazer essa mudança, contudo, resistem à pressão e assumem que querem continuar em Portugal, onde acreditam ser possível continuar a treinar e a fazer boas épocas.
«Não sentimos essa necessidade. Vamos lá de vez em quando treinar, mas são momentos pontuais. Uma semana, duas, alguns dias. Mas a nossa base é aqui. Temos o nosso projeto bem montado. Lá fora os treinadores são bons, treina-se bem, há muito nível e muito bons jogadores para treinar. Sempre que vamos lá aprendemos muito e voltamos com muita motivação», explica Nuno, acrescentando ainda que, para o desporto crescer a nível profissional, é preciso que desde cedo se incuta esta modalidade nas crianças.