Volta a Portugal De Volta do reino dos mortos que nos acordam para a vida
Palco da partida da 8.ª e antepenúltima etapa da Volta, esta sexta-feira, Boticas encerra em si um segredo único em Portugal. Com História, e que resume a garra de um povo, a merecer ser preservado mais de dois séculos e atenção especial, com A BOLA a ter o privilégio de visita guiada às catacumbas, aliás adega: o singular Vinho dos Mortos, assim denominado por os habitantes, aquando da 2.ª Invasão Francesa (Napoleão), perpetrada pelas tropas do general Soult em 1808, entradas em Portugal por Chaves, terem escondido o néctar dos deuses… na terra, sob o chão das adegas, para escapar ao saque e pilhagens do invasor.
Decorridos 231 anos, a Adega dos Mortos convida a entrar. E é em terra, saibro, que estão escondidas, enterradas, as garrafas do néctar que só as encostas de Boticas dão. É tinto exclusivo de quatro castas: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Touriga Franca e a transmontana Bastardo. E já acumula prémios atrás de prémios dos enólogos e experts.
É preciso desenterrar o vasilhame, da terra, com as unhas, a lembrar a exumação de caixões. Daí o nome. E o gozo de assim teremos ludibriado os franceses, que chucharam no dedo e se sede tinham, com ela ficaram. Alternativa era rumar às vizinhas Pedras Salgadas, Vidago, Carvalhelhos ou Pisões para matar a sede… com água. Que vinha, de Boticas, ficaram de mãos a abanar, devido à esperteza e engenho locais.
Necessidade aguçou o engenho
O vinho «é fino, leve, tem 12,5 graus» e as garragas ficam ali a maturar, no fresquinho da terra húmida, «sete a oito meses», depois da vindima, que nesta região é mais tardia, «finais de setembro e início de outubro, devido ao frio».
A apimentar a coisa, quando desenterraram as garrafas após, com o auxílio dos amigos ingleses, nos termos visto livres do jugo napoleónico - Soult avançou até ao Porto, recorde-se, mas Junot e Massena também vinham com sede ao pote luso -, os botiquenses descobriram que tinha ocorrido fermentação sob o solo. «O vinho adquire gás, fica mais leve, mais fino». Ou seja, o sabor mudara. E é essa caraterística única que é o segredo do êxito.
A colheita anual de ‘mortos’ permite engarrafar «nunca antes de janeiro ou fevereiro do ano seguinte um número limitado de 3800 garrafas», que em abril são, qual cápsulas do tempo, enterradas até haver necessidade de refrescar a goela, a €16 a garrafa.
Toda a produção vem dos três hectares da família Pereira – já compraram mais, o negócio cresce, pelo conceito fantástico que encerra, e a possibilidade de beber um néctar dos deuses que esteve literalmente enterrado -, explica-nos Nuno Pereira, filho de Armando Sousa Pereira e de Hermínia Rua, «a ‘Mininha’», de 72 anos, que em 2022 revolucionou o que à marca respeitava, com o ‘rebranding’, site online (onde todos podem experimentar) e modernização do negócio, que começou ainda antes de Napoleão cobiçar o retângulo luso, em 1792.
Estrangeiros fascinados pela História
O negócio está na família há gerações. «Nunca vamos abrir mão disto», diz-nos Hermínia Rua, enquanto Nuno Pereira, o filho – que gere um alojamento local e exerce, em teletrabalho, para uma empresa de software de gestão de Braga, «o negócio da família é só nas folgas e férias, mas não se pode perder» - meneia com a cabeça em sinal afirmativo e, ao colo do pai, o pequeno Noel, de 18 meses. Três gerações juntas de um negócio familiar que enaltece o que Portugal tem de melhor e único: História sem igual, aqui num casamento único com tão nacional produto.
Noel ainda nem sabe que um dia vai ser rei deste negócio dos ‘mortos’, de deixar bem acordado qualquer um comum mortal ainda a respirar. Como os estrangeiros já perceberam: de Itália e Espanha vem a maioria das encomendas, revelou-nos Nuno, na visita guiada à adega. Já não têm mãos a medir. Paz à alma do néctar de Baco, vida longa ao engenho de quem preserva negócio familiar de gerações tendo tido como pedra de toque um episódio em que enganámos o invasor aqui neste cantinho europeu.