Dos confins do inferno à glória, eis a fantástica e não menos surpreendente carreira ascensional da Sabgal-Anicolor na edição 85 da Volta a Portugal. Golpe de teatro inteiramente merecido pela equipa portuguesa. E por Artem Nych, o seu melhor corredor na Grandíssima e um dos melhores no nosso país, senão o melhor, como afirmou, sem complexos, o seu diretor desportivo Ruben Pereira após o contrarrelógio que consagrou o russo em Viseu. Aos 29 anos de idade, há apenas dois anos a competir em Portugal, o corredor longilíneo, de 1,95 metros, acaba de conquistar a maior vitória da carreira. - Após a terceira etapa, que terminou na Torre, na Serra da Estrela, estava na 21.ª posição da classificação geral, a distantes 4.06 minutos do líder Afonso Eulálio, depois de ter perdido 2.56 minutos para o vencedor, que foi esse jovem corredor da ABTF-Feirense. Provavelmente, nessa noite, nem nos seus melhores sonhos se veria a ganhar a Volta a Portugal. A imagem é correta? - Sim, sim, é. Ainda parece incrível termos vencido a Volta, depois de tudo… Eu creio que ninguém acreditaria nisso naquela altura. Nós também… muito pouco. A partir daí, acreditei que podíamos ganhar uma ou duas etapas, mas até ganharmos a geral ia uma grande distância. Parecia impossível, mas conseguimos. - No entanto, deram a 'volta à Volta'. - Pois foi. Foi muito especial, muito incrível. Mas nós fazemos isso, superamo-nos quanto é preciso. Porque todos fazemos o nosso trabalho o melhor que conseguimos, dando o máximo. Motivamo-nos e por isso ganhámos! - Onde foram buscar essa motivação, quando as contas da geral pareciam perdidas? - Só foi possível porque o nosso grupo é muito forte e somos todos amigos. - Essa força e essa unidade desbaratada tão cedo na volta. A vossa equipa estava a perder a Volta, tão cedo, quando era uma das mais fortes candidatas a vencê-la. - Sim, sim. No ano passado foi a mesma situação. Na etapa da Torre também ficámos todos para trás. [ainda assim, em 2023, Artem Nych perdeu menos tempo: 1.28 minutos para o vencedor da etapa, Delio Fernandez, e 1.22 para o futuro vencedor da Volta, Colin Stussi, curiosamente o mesmo tempo a que ficou o suíço no final da prova], mas no dia seguinte, na etapa da Guarda, mudámos o jogo e conquistei a camisola amarela, que acabaria por perder também no dia seguinte, porque ficámos sem apoio. E perdemos a Volta. Neste ano a situação foi diferente. Na etapa da Guarda partimos logo para a ofensiva [Nych foi 15.º, entrando na fuga, e recuperou 13 segundos]. Fomos de menos a mais. E ganhámos a Volta. «No Observatório estava morto» - Qual foi o plano da equipa para esta Volta? - Falámos que podíamos ganhar com o Mauri [Maurício Moreira]. O Fred [Frederico Figueiredo] também pode ganhar, mas caiu no Campeonato Nacional e esteve algum tempo sem treinar, e não pode se preparar para a Volta a 100%. Por isso, pensámos no Mauri e em mim para a geral. - Mas as coisas começaram a correu mal na primeira abordagem montanhosa, logo na segunda etapa, na chegada ao Observatório de Vila Nova. - Não sei o que me aconteceu. No Grande Prémio Joaquim Agostinho [última prova antes da Volta, que terminou dez dia antes, e Artem Nych foi 3.º da geral] senti-me muito bem e pensei que na Volta estaria ainda melhor. Mas na etapa do Observatório estava morto. Foi a primeira etapa de montanha e nunca se sabe como é que vai correr. Acho que foi uma crise [quando o atleta começa a perder rendimento]. Na etapa seguinte, para a Guarda, já me senti melhor. Ataquei e estive na fuga e senti que estava melhor… E depois de descansar [dia de descanso, após essa etapa] fiquei pronto para lutar. O organismo é uma coisa muito difícil de perceber, nunca se sabe como é nos vamos sentir. - Antes de uma competição que é um objetivo de temporada, vocês corredores preparam-na com toda a minúcia, correto? Têm treinos, estágios e não conseguem antecipar como é que poderão reagir à competição, como é que estão fisicamente? - Sim, mas é diferente nas corridas. Tudo se pode passar de maneira diferente da que prevíamos durante a preparação. Nos estágios, quando treinamos em conjunto com os companheiros de equipa, podemos avaliar a nossa condição, mas até certo ponto. Não se pode garantir como será o desempenho quando chegar a competição. Porque não se abre todo o gás no treino. Podemos sentir-nos bem ou mal, mas não como vamos sentir-nos em corrida. «Fred correu para mim» - E qual foi o momento em que se sentiu melhor nesta Volta, o momento de viragem? - Na etapa da Senhora da Graça. Com a ajuda do Fred, que é um trepador nato, ele foi fundamental. Creio que o Fred poderia ganhar essa etapa também, ele estava muito forte. Mas ele disse no rádio [que comunica com o carro de apoio]: ‘eu vou tirar [puxar] para o Artem’. Para que eu pudesse subir na classificação geral. E quando o ouvi dizer isso, fiquei com a responsabilidade de, pelo menos, vencer essa etapa. Mas consegui mais do que isso, a camisola amarela, e fiquei ainda mais motivado, porque vi como a equipa fez tudo por mim. - Uma vitória que teve muito de emocional? - Foi muito emocionante, sim, incrível. A equipa uniu-se quando sentiu que as coisas estavam a correr mal. Acreditou em mim, os meus companheiros acreditaram em mim. Foi incrível ouvi-los dizer, ‘vamos correr por ti’. - Pode concluir-se que a vitória veio da força do coletivo da Sabgal-Anicolor? - Sim, mesmo quando tudo corria mal, os nossos patrocinadores, o diretor desportivo, a equipa, todos, deixaram-nos tranquilos. Ninguém nos criticou. Isso é muito importante. Porque quando se ganha, tudo é bom, mas quando se perde, por vezes tudo é mau. Mas a nossa estrutura acreditou nos corredores. Disse-nos para fazermos o que ainda nos seria possível nesta Volta. Ganharmos uma etapa ou duas e acabar o mais acima que fosse possível na classificação geral. «Tinha boas pernas e lutei» - Venceu isolado a sexta etapa, que terminou em Boticas, e aí recuperou um 1.04 minutos (1 minuto mais 4 segundos de bonificação) para o camisola amarela, Afonso Eulálio. - Foi muito importante. Mas teve mais significado pelo simbolismo, por termos voltado a fazer alguma coisa boa na Volta. Não se deve esquecer que o Rafa [Rafael Reis] ganhou o prólogo e andou um dia com a camisola amarela. Mas, sim, as coisas para a classificação geral estavam muito mal. E além da vitória senti que tinha muito boas pernas. - Mas ainda estava longe na geral? - Pensei que talvez nos dias seguintes pudesse subir, se continuasse a lutar. Porque, para mim, ficar em décimo ou vigésimo na geral seria a mesma coisa. Por isso, na etapa da Senhora da Graça atacámos. Arriscámos, as pernas é que iriam falar. Porque não tínhamos nada a perder, já tínhamos perdido tudo. Corremos sem pressão nessa etapa e deu certo. «Felicitaram-me na Rússia» - E o que significa para si a vitória na Volta a Portugal e que importância terá para o seu futuro imediato? - Esta vitória é, sem dúvida, a maior vitória da minha carreira. E eu estou muito feliz. Recebi muitos mensagens da Rússia. De amigos, de treinadores. O Denis Menchov também ligou. Ele foi um grande corredor no seu tempo, um dos melhores de sempre da Rússia, ganhou a Volta a Espanha e a Itália. Deu-me os parabéns. É muito importante que as pessoas no meu país também reconheçam o nosso valor e nos apoiem. Para mim é muito importante. E aqui em Portugal também, claro. As pessoas são incríveis e gostam de ciclismo. «Líder da equipa? Não mudarei nada» Ainda a Volta a Portugal mal terminara e Artem Nych se consagrara como vencedor, já o diretor desportivo da Sabgal-Anicolor, Ruben Pereira, anunciava publicamente que o russo seria o novo líder da equipa para as grandes corridas, o que significa uma promoção do vencedor desta edição da prova em detrimento do uruguaio Mauricio Moreira, que foi aposta inicial da formação de Águeda para a classificação geral. - A partir de agora, após esta vitória e das declarações de Ruben Pereira, está preparado para ser o líder da equipa? - Para mim, não mudará nada. Sou a mesma pessoa depois desta vitória. Se tiver pernas para ganhar, não receio ser o líder da equipa. Se os companheiros estiverem mais fortes ou a equipa escolhê-los para liderarem, ajudarei sem problemas. Assim é mais fácil. Quando tens dois ou três corredores que podem ganhar, a equipa pode jogar melhor taticamente e tem mais alternativas. - Como aconteceu nesta Volta? - Sim, sim… Por isso ganhámo-la. Vencer no estrangeiro -Já venceu muitas corridas em Portugal estas duas temporadas que cá está, e a mais recente, a mais importante do calendário nacional. Quais são as vitórias que ainda ambiciona conquistar? - Ainda temos o resto da temporada. Não sabemos ainda o calendário e os objetivos para o próximo ano. Vamos ver. Não sei… Mas talvez queira ganhar corridas também fora de Portugal. Em Espanha, talvez. Vamos ver. Mas é muito difícil. Precisamos de ser realistas. O ciclismo está muito competitivo. Agora todas as corridas são muito difíceis. E cada ano é pior, pior, pior… - Em Portugal também? - Sim, sim. A concorrência é cada vez mais alta, alta, alta… «Viver em Portugal é muito tranquilo» Natural de Kemerovo, na Rússia siberiana. Artem Nych chegou a Portugal em 2023 para a Glassdrive-Anicolor, agora Sabgal-Anicolor, proveniente de equipa da Rússia, a ProTeam Gazprom-RusVelo, entretanto extinta após o início da guerra daquele país com a Ucrânia, onde competia há seis anos. Na União Ciclista Internacional (UCI) está inscrito com bandeira neutra. - Como tem sido a vida de desportista emigrante em Portugal? - Muito boa, aqui a vida é muito tranquila. Gosto assim. O país é bom, as pessoas são simpáticas. - Na rua, na cidade onde vive, Santa Maria da Feira, as pessoas reconhecem-no. Já sente acréscimo de popularidade desde a última semana, depois de ganhar a Volta? - Ah, não! Depois disso ainda não me apercebi. Mas antes, sim, algumas vezes, aqui na zona onde habito. Um pouco, sim. As pessoas falam comigo. Nas corridas mais. Gritam o meu nome, incentivam, e nas partidas e chegadas gostam de conversar. As pessoas aqui em Portugal gostam muito de ciclismo e dos ciclistas. Eu aprecio esse apoio.