Águas abertas: Braçadas de Miguel Arrobas matam fome a crianças

Águas abertas: Braçadas de Miguel Arrobas matam fome a crianças

NATAÇÃO22.09.202301:08

Antes de se lançar às águas do Tejo para nadar 20 quilómetros entre o Padrão dos Descobrimentos e Cascais, Miguel Arrobas já garantiu alimentação durante um ano a 125 crianças dos 18 países nos quais a Mary’s Meals atua

No próximo sábado, cada braçada do antigo nadador olímpico, que completa 49 anos no último dia de setembro, vai carregar a esperança de fazer com que os 2700 euros já angariados aumentem, de forma a matar a fome às mais de 2,4 milhões de crianças do Malawi, país piloto, da Ásia ou América do Sul já abrangidas pela associação fundada em 2002 pelo escocês Magnus MacFarlane-Barrow e que chegou a Portugal em 2017.

«No meu histórico de fazer travessias tentei, em algumas delas, aliar uma causa social. Tenho esta ideia de ir nadar do ponto A ao ponto B, de fazer uma coisa extraordinário que poucos fazem, mas só para dizer que sou o maior e cheguei ao outro lado? Não vale a pena. O que é que eu posso fazer, ajudando? Este ano, uma das responsáveis da Mary's Meals Portugal perguntou-me se não queria fazer uma maratona por eles? A correr?, perguntei. Podia fazê-lo, mas sou nadador, gosto de estar dentro de água. Sugeri fazermos uma maratona ou ultramaratona, que são mais de dez quilómetros a nadar. Ela gostou da ideia», começou por contar, a A BOLA, Miguel Arrobas, que representou Portugal nos Jogos Olímpicos de Barcelona-1992.

Em abril, o convite para ser embaixador da primeira prova em águas nacionais a integrar o World Open Water Swimming Association (WOWSA) juntou a vontade de ajudar o próximo deste advogado, pai de sete filhos, à paixão que o levou a bater recordes em travessias nas cinco horas que prevê precisar para cumprir a UltraMaratona Swim Series entre Lisboa e Cascais.

«Passa a ser a quarta prova a integrar esse tipo de circuito que contempla outras travessias, uma delas de Capri a Nápoles, que já é emblemática. E agora esta integra a WOWSA. É a primeira vez que se organizam 20 km a nadar em Portugal, em competição. Já fiz quase 60, mas esta será a prova com mais atletas de sempre até à data. Só nos 20 km, comparando com as outras três provas do circuito, tem 48 inscritos de várias nacionalidades», explicou, acrescentando que estão inscritos 88 para a prova de 10 quilómetros com início em Carcavelos.

«E nasceu a ideia de fazer a travessia por mais uma causa social. No outro dia, uma pessoa disse-me que só tinha 68 cêntimos. Venham de lá eles. Se todos nós dermos 68 cêntimos, juntaremos uma pipa de massa», exultou, empolgado com o lado competitivo, mas sobretudo com o mote de levar alimentos a lugares onde a escassez abunda.

Dores e cãibras colmatadas com vontade

«Dá-me imensa força saber que tenho tanta gente ali a torcer por mim, mas também sei que quando ficar cheio de cãibras, com frio e dores aqui ou acolá, será por um bem maior. Se não terminar, sei que não é por aí que vai deixar de haver a angariação de fundos, mas é mais um incentivo para ir em frente», refletiu. 

«Isto custa, não deixa de ser uma competição, vou competir contra outros nadadores, mais novos, muitos deles irão com fatos isotérmicos, portanto com vantagem acrescida, porque eu lanço-me à água à antiga… [risos]. Mas a água tem estado a 19 ou 20 graus, o que para mim é um bom molho», desdramatiza o nadador que, em 2008, estabeleceu o recorde mundial na travessia de 34 quilómetros do Canal da Mancha.

No currículo de Arrobas figuram várias causas sociais, como a travessia, em 2009, do Golfo de Gabés, entre as ilhas Kerkennah e a cidade portuária de Sfax, com o fito de promover as maratonas em águas abertas e o diálogo, a nível desportivo e cultural, entre a Europa e os países do Magrebe africano. 

Ligação entre Peniche e Berlengas, a Madeira e as Desertas ou mesmo do estreito de Gibraltar são outras das «maluquices», como descreve o bem-disposto advogado: «Acredito em Deus e sou católico e há uma coisa que é uma parábola dos talentos, que diz põe os teus talentos a render. Espero ter mais talentos, mas um deles é nadar. Se nadar for só para chegar ao outro lado e dizer que sou muito bom, não serve de nada. Há que sair fora de nós próprios e olhar para o resto do mundo, que decerto encontraremos alguém em maiores dificuldades». 

«Se angariarmos 50 euros já será melhor do que nada. Hoje [esta quinta-feira] chegámos aos 2700 e tal euros. Conseguimos só com isto garantir, para já, alimentação a 125 crianças durante um ano. Pode perguntar se faria sentido em Portugal, cada vez há mais tendas de sem-abrigos… Eu estarei sempre disponível para ajudar. Já lancei o desafio para outra futura travessia, de ajudar uma associação que leva jovens com deficiência para o mercado de trabalho», deixou escapar. 

«Seja para angariarmos dez, cem ou cinco mil euros, eu estou pronto a ajudar. É melhor do que nada e dá-nos sempre a possibilidade de fazermos alguma coisa pelos outros», vinca.

E para a causa cativou, sem grande esforço, a ajuda de José de Freitas, antigo nadador e colaborador de A BOLA, treinador de vários olímpicos. «Deteve o recorde do mundo da travessia do Estreito de Gibraltar durante 40 anos. Disse que me ia dar 12 dos seus livros para eu poder vender pelo preço que quisesse, sendo que o produto dessa venda seria para a Mary's Meals. Disse-me até que se sentia arrepiado pelo que eu ia fazer, porque não conhecia nadador algum que tivesse feito isto por uma causa social», contou.

Preparação em família, com râguebi na mira 

Pai de sete filhos, Arrobas tem em parte da prole a equipa de apoio logístico para a sua travessia. «A mais pequenita tem sete anos e perguntou logo se também podia ir no barco de apoio. Lá expliquei à Teresinha que não podia ser, mas já tenho um dos rapazes que vai no caiaque de apoio. Tenho uma filha, mais velha, a estudar nos Estados Unidos com bolsa, que não está cá.» 

«O segundo, que fez agora 19, como já tem carta, é o que irá ajudar-nos nas deslocações de carro. O Vasco, que é o terceiro com 16 anos, vai dar apoio no caiaque que me vai acompanhar. Levará a comida, que se resume a gel energético, barras, bananas e comida isotónica. Estamos quatro, cinco horas no mar, a engolir água salgada e nem sempre é fácil. De vez em quando como um donut, sempre sabe melhor. Durante a prova tenho de ter o cuidado de ter a energia e proteína necessárias e de estar bem hidratado.» 

«Fiz [quarta-feira] o primeiro treino de adaptação com ele e a minha mulher, que irão pagaiar, para testarmos as distâncias e aumento de velocidade e paragem. Adoro e, por isso, continuo a fazer estas maluquices», exultou animado. 

Apesar da paixão paterna pela água, o râguebi é outra das modalidades de eleição da família Arrobas. Todavia, o apoio à Seleção no Mundial vai ser sacrificado em nome da causa da Mary’s Meals. 

«O Vasco joga râguebi no Agronomia, mas no sábado o Portugal-Geórgia vai dar quando estivermos dentro de água, portanto, não vamos conseguir ver. Temos visto os jogos todos. No dia 1 de outubro vou ver o Portugal-Austrália lá. Adoro râguebi, a filosofia. No jogo das Fiji houve um jogador que podia ter feito ensaio, só que deixou cair a bola a milímetros antes de tocar no chão. O próprio jogador, cuja seleção estava a perder contra o País de Gales, salvo-erro, disse não ter conseguido. Adoro a verdade desportiva. Gosto de ver futebol, mas tudo à volta irrita-me. Vibro com todo o desporto», salientou, contando que três dos seus «rapazes», além de Vasco, «campeão nacional de sub-16 o ano passado», jogam na escolinha de râguebi da Galiza, conformado por não ter conseguido ‘contagiar’ a prole para a natação.

 «As raparigas fazem patinagem artística, a minha filha Leonor, nos EUA, nada alguma coisa, mas já ninguém faz natação. Todos sabem nadar, dois deles fizeram ainda um princípio de competição, mas só eu dou continuidade à modalidade. Fazem desporto, que é o que interessa», frisou quem tem passado os últimos meses a treinar-se na piscina diariamente e a fazer «treino de ginásio para a força muscular». 

«Não vou lá para ganhar, o que tive a ganhar, já o fiz há algum tempo. As coisas que nenhum português fez, sou recordista até do Mundo em várias coisas, porque não houve outros a fazê-lo. Sou competitivo, mas quero terminar, fazer esses 20 quilómetros para dar visibilidade a uma causa social», rematou, deixando o pedido: «Visitem a página www.marysmeals.pt, leiam sobre a causa e ajudem!» Afinal, meros 22 euros chegam para alimentar cada uma destas crianças durante um ano nestes países…