Na história das grandes voltas incluindo nas últimas décadas houve surpreendentes vencedores, mas poucos tão imprevistos como Sepp Kuss, o discreto e talentoso corredor norte-americano que vinha à edição de 2023 da Volta a Espanha para cumprir a função habitual na sua equipa Jumbo-Visma, em que reconhecidamente é um dos melhores do pelotão mundial. O trepador seria mais uma vez o principal apoio na montanha, não de um líder, mas de dupla, uma das mais poderosas dos tempos recentes nas três maiores corridas por etapas, Primoz Roglic e Jonas Vingegaard. Kuss contribuíra com o meritório trabalho para as derradeiras seis vitórias em grandes voltas, do esloveno em três Vueltas (2019, 2020 e 2021) e um Giro (2023) e do dinamarquês, em dois Tour (2022 e 2023). O valoroso gregário, por ser considerado indispensável, foi selecionado pela equipa neerlandesa para corrida espanhola apesar de acumular a terceira grande volta na temporada, e certamente estaria distante de imaginar que na prova em que celebrou o 29.º aniversário ascenderia à condição de líder, que sempre descartou como não dispondo do perfil adequado e conquistasse nesta Vuelta a maior e mais improvável vitória da sua carreira. Kuss conquistou os fãs e a Jumbo-Visma viu-se forçada a ordenar aos seus líderes que não desapossassem o norte-americano da camisola vermelha. Kuss esteve sempre disponível (nem que fosse para o exterior) a ceder a liderança. Enfim, Kuss merece vencer a Vuelta 2023. Em posição altamente vantajosa na classificação geral logo à sexta etapa, que venceu, Sepp Kuss ascendeu à primeira posição daquela hierarquia ao oitavo dia, passando a envergar a camisola vermelha. Todavia, poucos o vislumbravam vestido dessa cor até ao fim. Humilde e consistente nos seus desempenhos, o ciclista natural de Durango, cidade do estado do Colorado, rapidamente mostrou que tinha capacidade para defender a liderança e que só os próprios companheiros de equipa poderiam tirar-lha… Estes bem tentaram e tê-lo-iam desapossado não tivesse a crescente polémica pública, após a etapa do Angliru, em que Roglic atacou e levou na roda Vingegaard, distanciando Kuss, forçado os diretores da Jumbo-Visma a intervirem e refrear o ímpeto de triunfo às suas duas estrelas. De qualquer forma, para este norte-americano politicamente correto, a luta de egos no seio da equipa terá sido quase tão fácil do que subir montanhas. Kuss insistiu sempre no discurso conciliador e despojado de excessos de ambição, dispensando «ofertas» dos parceiros, a quem nunca poupou a elogios e teceu a mínima crítica. O esloveno e o dinamarquês, mais ou menos resignados, acederam a inverter papéis e escoltaram o habitual gregário até à última meta em Madrid, onde Kuss confirmou espantosa vitória na Volta a Espanha, dez anos depois do não menos surpreendente Chris Horner, que atingiu a glória nesta corrida aos 41 anos. «Não sou diferente agora que ganhei a Vuelta, nem pensar! Continuo a ser o mesmo, embora tenha alcançado algo que, de facto, traz uma mudança à minha vida. Vou lembrar-me desta experiência para sempre. Ainda sou a tentar interiorizar, vai demorar um pouco. Agora, vou fazer uma grande comemoração. Com a minha família, os meus amigos, será muito especial. Também os companheiros de equipa e todo o staff, recordar as histórias destas últimas três semanas. São tantas recordações e tão bons momentos», declarou o protagonista de um dos maiores imprevistos da história recente do ciclismo de estrada. «Não sou diferente agora que ganhei a Vuelta, nem pensar! Continuo a ser o mesmo, embora tenha alcançado algo que, de facto, traz uma mudança à minha vida. Vou lembrar-me desta experiência para sempre. Ainda sou a tentar interiorizar, vai demorar um pouco»