O surf salvou-lhe a vida e é talvez por isso que ela a deixa nas mãos do mar de cada vez que enfrenta o risco de morte no estrondoso Canhão da Nazaré. Joana Andrade foi a primeira e é ainda a única mulher portuguesa a surfar a onda gigante da hoje mundialmente famosa Praia do Norte. Uma supermulher que, aos 43 anos, tem em si gravada uma história de medos e traumas que assume e que procura entender, ultrapassar, superar naqueles instantes em que se liberta do cabo da mota de água e se lança na descida a alta velocidade de uma montanha de água com 15 ou 20 metros, algo como um prédio de sete andares ou «o Evereste do surf», como lhe chama. Nas suas costas, pronto a esmagá-la, está um monstro, primeiro silencioso, depois brutalmente ensurdecedor, com mais de uma tonelada de massa bruta – o equivalente ao peso de 800 carros. E é do alto do seu metro e meio (ou pouco mais) que Joana se rende a ele, numa conexão e numa imensidão de sensações que só consegue comparar à liberdade de ter asas e voar. E é ali, naquele turbilhão inimaginável para o comum dos mortais, que se sente em paz e harmonia. Mesmo que o medo, «o nosso amigo medo», esteja sempre presente, como confessou em entrevista a A BOLA. «Se sou louca? De louco todos temos um pouco, claro, mas... sou, acima de tudo, uma guerreira que gosta de enfrentar desafios, de ultrapassar obstáculos, de perceber de onde vêm os medos e os bloqueios e como encará-los. E a ferramenta que encontrei para chegar lá foram as ondas gigantes. Mas, além disso, além desse lado radical, sou uma mulher, sou sensível, amiga, numa busca espiritual e à procura de um sentido forte nesta vida», começa por contar-nos Joana Andrade, explicando o que pode parecer um paradoxo, o da calma e serenidade que procura no dia a dia e o da agitação ruidosa e perigosa das ondas da Nazaré. «Algures no meio está o equilíbrio, sim. Sabendo que, muitas vezes, é no meio das tormentas que nos encontramos e vamos buscar forças. Surfar uma onda é como a nossa vida ou, como costuma dizer-se, surfar a onda da vida. Tens de dropar, tens de agir. E a vida tem muito disso: se tens de avançar, tens de dar o primeiro impulso. Temos tantos caminhos pela frente e tantas vezes não avançamos pelos mais difíceis ou desafiadores por causa de medos ou bloqueios.» No fundo, explica-nos a surfista, a superação de um medo gigante, como o que podemos ter do mar ou como o que, decerto, teremos de uma onda de 15 ou 20 metros, «suaviza muitos outros instantes da vida que poderiam parecer mais complicados» do que realmente são. Se sou louca? De louco todos temos um pouco, claro, mas... sou, acima de tudo, uma guerreira que gosta de enfrentar desafios, de ultrapassar obstáculos, de perceber de onde vêm os medos e os bloqueios e como encará-los. E a ferramenta que encontrei para chegar lá foram as ondas gigantes. As ondas grandes acabam assim por ser uma espécie de professoras na vida de Joana. «Aprendi muito, mesmo muito. Desde logo a disciplina que esta modalidade requer, porque eu sou muito irrequieta. No surf de ondas gigantes tens de ter um foco, uma determinação e uma disciplina muito grandes, porque estamos a desafiar a morte», acrescenta. «O MEDO ESTÁ SEMPRE LÁ E… É O NOSSO MELHOR AMIGO» E o medo? Existe? Como se lida com isso? «É um mix de muitos sentimentos. Eu sempre fui desafiadora, conquistadora, sempre gostei de ir aos meus limites. Admito que penso muitas vezes no que é que eu estou ali a fazer. Mas há uma força maior dentro de mim, uma energia que me diz que é ali, na onda, o meu momento. É o aqui e o agora. E esse foco vem do medo (e da adrenalina que anda lado a lado com o medo). E é tão difícil a nossa sociedade atual estar focada no presente, no aqui e no agora… Eu consigo nas ondas e delas trago ensinamentos para o meu dia a dia, para a minha carreira como professora de surf, este desporto maravilhoso», explica-nos Joana Andrade. «O medo está sempre lá e é bom ter medo. Dá-te humildade. Nas ondas estamos todos com medo e ele é nosso amigo. Mas há o medo e há o pânico. E esse pode ser teu inimigo, pode bloquear, pode matar», continua. «ACREDITEM OU NÃO, EU TENHO UM MEDO ABSURDO DO MAR» Para Joana, a paixão pelo mar e pelo surf vem de muito cedo. Mas há um episódio marcante que definiu o seu rumo de vida. «Acreditem ou não, eu tenho um medo absurdo do mar. Eu ia morrendo duas vezes afogada quando era miúda. Na primeira, tinha cinco anos, o meu irmão empurrou-me para dentro de um lago e foi um ganso da minha avó que me salvou, imaginem! A outra foi na praia de Carcavelos, uma corrente levou-me e quem é que me salvou? Um surfista. E nesse instante pensei logo: é isto que eu quero! O trauma desse momento ficou, mas o fascínio daquele surfista foi maior», conta Joana, acrescentando: «Um dos meus maiores medos é morrer afogada, mas é enfrentando-o que eu conseguirei entendê-lo e, quiçá, superá-lo.» «O SURF ERA O ÚNICO DESPORTO QUE A MINHA MÃE PROIBIA» «Eu era muito irrequieta, sempre de um lado para o outro, sempre em busca de algo para fazer. E os meus pais tentaram meter-me em todos os desportos possíveis e imagináveis. E o único que a minha mãe me proibia era o surf. E foi para o que decidi ir. Porque era o único onde sentia uma paz e uma conexão. Parecia que era a minha casa», recorda a atleta, que fixou residência numa das mecas do surf em Portugal, a Ericeira. Há um instante de uma estranha tranquilidade quando estamos lá em baixo a lutar pela vida… Há uma entrega, há um desabafo de… olha, estou aqui, estou nas tuas mãos, faz o que tu quiseres. Mas depois há um botão de emergência que vive em nós que, de repente, nos grita: não!, está nas nossas mãos, temos de salvar-nos! E aí vais buscar forças que nem imaginas que tens... E em que instante sentiu que tinha de surfar a onda gigante da Nazaré? «Uff! Desde que a Nazaré ficou nas bocas do Mundo por causa da onda surfada pelo McNamara [23,7 m, a 1 de novembro de 2011] que eu tinha uma vozinha dentro de mim a puxar-me para ali, até mesmo depois de ir lá ver e pensar que era demais, que era para malucos, que aquilo era surfar o Evereste. E a verdade é que eu só ganhava campeonatos de surf quando as ondas estavam maiores. Portanto, porque não tentar. Eu precisava de algo mais e comecei a treinar.» A verdade é que «um ano depois de muito treino», em novembro de 2014, Joana Andrade arriscava os primeiros passos no Canhão da Nazaré. E, num instante de enorme felicidade, apanhou logo «a onda», pela qual foi nomeada para o prémio Billabong Ride of the Year, do XXL Big Wave Awards de 2015: «Quando chegou o dia, apanhei logo a onda da vida [cerca de 15 metros], que me abriu portas por todo o Mundo, por ter sido a primeira surfista europeia a consegui-lo.» «DESCER A ONDA GIGANTE É COMO VOAR, PLANAR…» A atleta de 43 anos gosta de desafios e, por isso, lançámos-lhe um: o que se sente em cima da prancha a descer uma parede de 15 ou 20 metros de água? «Eu, como qualquer ser humano, não tenho a capacidade de voar, mas sinto que descer a onda gigante é como voar, planar… Porque é uma tranquilidade tão grande… só se ouve a prancha numa espécie de zumbido em cima da água. E de repente… bum! É um estrondo, um barulho ensurdecedor a explodir atrás de nós. É aí que temos noção de que há algo muito grande atrás de nós. Sei lá, é uma sensação de liberdade e acho que é por isso que eu o faço. Há um momento de dúvida em que pensamos sempre: lá vou eu outra vez ou o que é que eu estou aqui a fazer… E de repente largamos o cabo e lá vamos nós para a montanha russa da vida. Mas quando começamos a deslizar entramos noutra dimensão, é difícil de expressar», atira a experiente surfista. «QUANDO VAMOS AO FUNDO, HÁ UM INSTANTE EM QUE NOS DEIXAMOS IR…» Os sustos, esses, «já foram muitos, claro». Mas não permitem desistir. Como aconteceu com Maya Gabeira, que quase perdeu a vida na praia do Norte em 2013, nos primórdios da onda da Nazaré, mas voltou ao local para bater recordes. «Quando aconteceu o acidente da Maya, as condições eram outras, não havia a segurança e os equipamentos que existem hoje. Mas o risco de vida continua lá. Em janeiro do ano passado, perdemos, lamentavelmente, mais um grande campeão no mar da Nazaré [Joana refere-se ao brasileiro Márcio Freire, que perdeu a vida a 5 de janeiro de 2023 enquanto surfava na praia do Norte]. Eu tive vários episódios de ficar lá em baixo muito tempo. Felizmente, nunca apaguei, mas há um instante de uma estranha tranquilidade quando estamos lá em baixo a lutar pela vida… Há uma entrega, há um desabafo de… olha, estou aqui, estou nas tuas mãos, faz o que tu quiseres. Mas depois há um botão de emergência que vive em nós que, de repente, nos grita: não!, está nas nossas mãos, temos de salvar-nos! E aí vais buscar forças que nem imaginas que tens», assegura Joana, reconhecendo que «um acidente como o da Maya pode acontecer a qualquer um pois estamos a falar da maior onda do Mundo», mas que a ciência e as ferramentas que hoje rodeiam o Canhão da Nazaré «ajudam cada vez mais a mitigar esse risco». COMO É A PREPARAÇÃO DE UMA SURFISTA PARA AS ONDAS GIGANTES? Muitos pensarão que as mulheres e homens que se arriscam no Canhão da Nazaré são meros malucos viciados em adrenalina e para quem a vida não tem valor. Pois… está muito enganado quem pense assim! «Há uma dose de loucura, claro que sim, mas há muita, mesmo muita, preparação», começa por explicar Joana Andrade, especificando: «Há uma estrutura muito grande atrás de cada um de nós e a preparação individual passa por muitos treinos de apneia, para conseguir aguentar o máximo possível debaixo de água – até porque, quando caímos de uma onda daquelas, pode passar muito tempo até voltarmos à tona e, aí, manter a serenidade e o foco é fundamental e isso consegue-se com muito treino», começa por explicar. «Depois é imaginarem um ginásio debaixo de água, em piscina. A musculação é feita debaixo de água, onde também faço meditação. Faço muito cardio também e há ainda o trabalho de equipa: perceber bem os meus pilotos (quando o mar está grande temos de ter dois, um para o tow in, outro para o salvamento em caso de queda), conhecer bem o spotter, que é quem fica em altitude a dar indicações via rádio aos elementos da equipa», continua. «ISTO É A FÓRMULA 1 DAS ONDAS» Tanta gente e tanto material permite julgar que este é um desporto que custa muito dinheiro. É caro o surf de ondas gigantes, conhecido como tow in? «Muito caro. Isto funciona por equipas e temos de pensar nos elementos, nos equipamentos – as pranchas são especiais, mais pesadas, com chumbo (a minha pesa uns 10 quilos quando vou para 20 metros), porque a velocidade é tanta (que com uma prancha leve era impossível; os fatos são almofadados, têm uma espécie de airbags que inflam por via de botijas de CO2 que temos num segundo fato e que ativamos para voltar à tona – mais o custo das motas de água, da mecânica destas, dos rádios, das viagens… É pensar como são as equipas de Fórmula 1, isto é a Fórmula 1 das ondas», assegura a big wave surfer. «ALI, NÃO INTERESSA SE ÉS HOMEM OU MULHER. OS MEDOS NÃO TÊM GÉNERO»Num meio ainda marcadamente masculino, Joana vai abrindo portas ao crescimento da modalidade no feminino e é a prova viva de que, ali, na onda, «os medos não têm género», de que «as mulheres são tão válidas quanto os homens». O recorde que busca, aliás, não é feminino. Ela quer mesmo o absoluto, quer a maior onda. Mas, admite, não foi fácil entrar na comunidade da Nazaré… «Houve muita gente a criticar-me a julgar-me, a dizer ‘Joana não faças isso!’ ou ‘Isso não é para ti’. Eu lutei muito. Os meus pais também não me apoiaram, mas eu queria mesmo. A própria Maya Gabeira quando teve o acidente grave em 2013 foi alvo de algum preconceito. Diziam que ela não estava preparada para aquilo porque era mulher. Que ridículo. Hoje, ainda há quem nos diga: olhem que isto está grande para vocês, é melhor não irem. Mas há um caminho que está aberto e já nos veem…», conta Joana Andrade. «Sinto que abri portas para outras mulheres. Só não há mais, porque isto exige muitos apoios, é muito caro, exige muita dedicação. Na Nazaré, há apenas quatro mulheres a surfar, mas… o caminho está a ser feito», considera, admitindo que a comunidade da Nazaré já foi mais unida: «Sim, antes, sim. Quando era novidade, andávamos todos à descoberta. Mas ganhou uma dimensão tal, que se tornou elitista. Hoje é um ambiente muito competitivo. Claro que se houver uma aflição, um acidente ou perigo, aí paramos todos e vamos ao resgate.» FORMA COM MICHAELA FREGONESE A ÚNICA EQUIPA FEMININA DO MUNDO Outra proeza conquistada por Joana Andrade é a de ter, desde o ano passado, formado a primeira e única equipa formada exclusivamente por mulheres no circuito das ondas gigantes. Foi ao lado da surfista brasileira Michaela Fregonese, mãe e agente de viagens que divide a sua vida entre o Hawaii e a Nazaré, que a surfista portuguesa atacou a última temporada – novembro de 2023 a fevereiro de 2024 – na praia do Norte. «Foi um desafio que lancei e está a correr maravilhosamente. Trabalhamos uma para a outra e depositamos total confiança uma na outra. Fazemos tudo. Umas vezes conduz ela a mota e eu vou para a onda, outras vezes invertemos os papéis. E mostramos que nós, mulheres, somos capazes de tudo. E olhe que eu não sou extremista do feminismo, mas as mulheres têm de unir-se e perceberem-se umas às outras, apoiarem-se», garante. A CAMINHO DA CALIFÓRNIA, DA IRLANDA E DO HAWAII «A onda que eu quero está na Nazaré, na Praia do Norte, mas, na próxima temporada, quero desafiar-me lá fora. Experimentar as ondas de Mavericks [Califórnia, onde podem atingir 24 m], da Irlanda [Mullaghmore, 20 m], do Hawai [Waimea, 25 m]», projeta, entretanto, a pequena grande Joana, sabendo que os recordes dependem da natureza: «Qualquer um pode batê-lo, depende da onda, do estar na hora certa à hora certa.» Pelo meio, vai-se dedicando a outros projetos. Esteve envolvida em São Tomé e Príncipe no SOMA (Surfistas Orgulhosas na Mulher de África) de apoio a meninas locais através do surf, no combate às desigualdades de género. Foi, ainda, personagem principal do documentário Big vs. Small, filmado em 2020 pela finlandesa Minna Dufton e que relata a história de coragem, determinação e superação de Joana. E, hoje, dedica-se à sua escola de surf ambulante, a Progress Surf School, que recebe sobretudo estrangeiros, muitos deles em busca de superar o medo do mar, mais do que aprender a surfar: «É terapia por via do surf. Surf terapia. O surf salvou-me e ajudou-me no meu processo de autoconhecimento. Quero permitir isso a outros, ajudar.» Tudo isto enquanto espera que chegue novembro para poder voltar à sua casa: a onda gigante da Nazaré, «onde o ser humano enfrenta uma das maiores forças da natureza». É assim Joana Andrade: uma força da natureza!