Sporting sem Pelé ou Garrincha e com guarda-redes que jogadores queriam e treinador não
Festa sportinguista depois da obtenção de um golo no jogo Sporting - Atalanta (3-1), 1ª eliminatória da Taca das Tacas, realizada no Estádio de Alvalade, em Lisboa, em outubro de 1963. Foto: ASF

VIAGEM PELA HISTÓRIA Sporting sem Pelé ou Garrincha e com guarda-redes que jogadores queriam e treinador não

INTERNACIONAL05.10.202309:00

A campanha para a conquista da Taça das Taças arrancou em Bérgamo depois do Sporting ter falhado a contratação de Pelé e de Garrincha. Antes disso andou Carvalho em alvoroço e foi mesmo à última hora que não perdeu a baliza. Na baliza continuou em Alvalade – e aí drama viveu o guardião da Atalanta…

Foi jogando a primeira eliminatória contra a Atalanta que o Sporting se lançou à conquista da Taça das Taças de 1964 – logo se vendo que a sua sina seria ir deixando adversários que lhe calhassem pelo caminho em complicação e odisseia (à exceção, claro, do APOEL que, de um dos seus dois jogos em Alvalade, sairia vergado aos 16-1 da maior goleada europeia da história…)

Falhando as contratações de Pelé e Garrincha, António Abrantes Mendes trouxera do Brasil o Bé – já depois de ter trazido de lá um dos seus mais carismáticos treinadores: Gentil Cardoso (que, não prescindiu de cá ter com ele o preparador físico que era um dos seus trunfos: Jair Raposo – e o seu efeito em espanto no jogo de desempate com a Atalanta). 

Tentara igualmente em vão ainda outra «truta»: Mengálvio, que fora suplente de Didi no Brasil que se sagrara campeão mundial no Chile. Para que o acordo se fizesse, propôs que António Monteiro fosse, como moeda de troca, jogar para o Santos de Pelé, Zito, Coutinho e Dorval – mas Lula, o seu treinador, desfez a hipótese por achar que só mesmo Didi poderia fazer numa equipa de futebol o que Mengálvio fazia. António Monteiro ainda o não sabia, sabê-lo-ia, pouco depois: ao contrário de vários jogadores que por cá conseguiam ficar a salvo da guerra, ele não: iria para Angola (onde nascera). 

Gentil Cardoso, o filosófico treinador do Sporting que abriu a Taça das Taças de 1963/1964 contra a Atalanta. Foto: ASF

O MÉDICO DO SPORTING QUE AJUDOU A MILITANTE COMUNISTA A FUGIR DO HOSPITAL

A PIDE continuava a ter médicos nas prisões, eram médicos mas pouco. Por exemplo, no Forte de Peniche, o serviço estava entregue a José Bonifácio da Silva. Já com mais de 80 anos e surdo, fazia gala de dizer que não acreditava em modernices como radiografias ou eletrocardiogramas. Tempos antes, Georgete Ferreira, militante do PCP presa em Caxias, queixara-se de «crise ginecológica» - e Martins Ruas (médico de igual calibre…) receitara-lhe apenas... «saco de água quente para pôr sobre o ventre». 

Dobraram-se semanas com Georgette em agonia até que por pressão de reclusos e reclamações de família a levaram aos Capuchos. Numa das consultas, a pretexto de ir ao laboratório das análises, entrou numa casa de banho, mudou de penteado, pôs vestido que lá deixaram, saiu para a rua, entrou no carro que a esperava – e fugiu. 

Logo se suspeitou que pudesse ter sido ajudada por «alguém do hospital» - a PIDE, porém, nunca descobriu quem. Foi Arménio Ferreira, que viera de Angola para jogar futebol no Sporting, médico do clube se tornou, seu dirigente também. No Sporting se mantinha, então, a tratar das questões da cardiologia – e outro segredo se não esfanicou (para sua sorte): que estivera na fundação do MPLA, o movimento independentista angolano – e, tal como ajudara Georgete a escapar ao seu suplício, ajudava gente a escapar à guerra, desertando. Que foi o que Monteiro não quis fazer (logo após a sua participação na histórica campanha da conquista da Taça das Taças).   

Foi por pouco que Gentil Cardoso não tirou a baliza do Sporting a Carvalho. Foto: ASF

ANTES DE BÉRGAMO, TREINADOR IRRITADO E CARVALHO EM RISCO…

Antes da partida do Sporting para a primeira partida contra a Atalanta, esteve no Torneio de Santander – e alvoroço se vivera em Alvalade quando lá chegou telegrama de Gentil Cardoso a pedir que lhe mandassem de súbito Barroca (guarda-redes que tinha deixado, sorrateiro, o Benfica – cansado de ser suplente de Costa Pereira). A razão fora Carvalho (e Pais) terem sofrido seis golos do Athletic de Bilbau – e, da edição seguinte de A BOLA, saltitou a notícia (que parecia óbvia): que, em Bérgamo, a baliza seria de Barroca, não seria de Carvalho… 

Perdendo, entretanto, o Sporting com a Lazio e o Racing Santander (ambos por 1-2) – se o jogo com os espanhóis enfarinhara Gentil Cardoso, o jogo com os italianos deixara-lhe mostarda no nariz: «Perdemos por falta de valentia, porque eles meteram sempre melhor o pé, porque eles foram sempre mais corajosos e sobretudo desordeiros. Depois foi o caso do Carvalho... Nenhum goleiro deste mundo pode ser batido assim, especialmente como foi no segundo golo, a três minutos do fim. É uma derrota que me envergonha. Não, nem quero desculpa com o juiz mesmo que com um juiz honesto a Lazio teria ficado com quatro ou cinco caras apenas. Portanto, vou falar muito a sério com meus jogadores. Vou pôr o caso como ele é. Para Bérgamo só podem ir os bravos, quem pensar muito na mulher ou no filho, o melhor é ir para Lisboa...» 

Antes de se tornar uma das grandes figuras da conquista da Taça das Taças, Osvaldo Silva andou por maus lençóis (e por isso não jogou em Bérgamo). Foto: ASF

OSVALDO SILVA A CHORAR (E SEM COMER…)

Em Bilbau tinha havido mosquitos por cordas em torno de João Morais (que ganharia a eternidade na finalíssima com o MTK, através do golo da vitória, na sublime parábola do seu cantinho…), mosquitos por cordas voltou, pois, a haver em Santander – e aí quem levou com o vexame foi Osvaldo Silva. Que Cruz dos Santos, enviado especial de A BOLA, apanhou em lágrimas a caminho do quarto: «Após o jogo com a Lazio, apareceu no hotel amparado por dois colegas, a chorar. Todos pensaram que seria por causa da lesão que tinha num pé. Mas soube-se depois que tinha havido algo desagradável na cabina em palavras de reprovação que Gentil Cardoso terá dito a toda a equipa devido à atuação com a Lazio. E a verdade é que nem Gentil nem Osvaldo jantaram. O técnico meteu-se na cama e tomou um chá e o jogador ficou no leito sem ter comido nada. Visitámo-lo algumas vezes no seu quarto, mas nada nos revelou. Apenas chorava. Depois também não compareceu ao almoço. Gentil Cardoso revelou-nos que o ia multar severamente porque não tinha cumprido as suas instruções. Que andara a marcar livres na retaguarda e a fazer lançamentos da linha lateral quando o seu papel era o de avançado-centro e as ordens era para jogar à frente. Constou que Osvaldo iria ser mandado para Lisboa, isso não se confirmou - e até vai integrado na comitiva para Bérgamo...»

JOGADORES CONVENCERAM TREINADOR A NÃO TIRAR A BALIZA A CARVALHO

Sim, Osvaldo Silva (que haveria de ser o herói maior na reviravolta que se deu em Alvalade nos 5-0 ao Manchester United) foi para Bérgamo, mas lá ficou suplente de Augusto Martins – e Carvalho só não ficou suplente de Barroca porque, à última hora, convencido por alguns dos seus pupilos, Gentil Cardoso não lhe tirou a baliza das mãos e não se arrependeu. 

Hilário, o capitão do Sporting, foi um dos jogadores que convenceram Gentil Cardoso de que o guarda-redes devia ser Carvalho. Foto: ASF

«Espantoso, às vezes soberbo», foram dois adjetivos que se colaram ao nome do guarda-redes leonino, nos jornais italianos.  Contudo, Carvalho (que, como já era de costume, jogara com estatueta de Santa Filomena escondida dentro da sua baliza) descobriu motivo para ténue lamento: «No primeiro golo, a bola passou bastante alta e eu não podia chegar-lhe sem asas. No segundo, tive ainda mais infelicidade: meti o punho à bola, como, aliás, se impunha, mas a bola trazia demasiada velocidade e ressaltou, caprichosa, para as redes...»

«DOIS GOLOS PARA LISBOA PODE SER POUCO» (E O SPORTING COMPARADO AO MELHOR BENFICA CAMPEÃO EUROPEU)

Devido à chuva que se abatera sobre Bérgamo durante todo o dia, as bancadas ficaram preenchidas pela metade. A 16 minutos do fim, o Sporting estava empatado a zero, acabou por sofrer dois golos – e a vantagem que colheu não deixou Quário, o treinador italiano, de esperanças muito mais largas: «Não, sei, não sei... Dois golos para Lisboa pode ser pouco. O Sporting é possuidor de uma senhora equipa, com o senão do ataque não se mostrar de grande capacidade...»

No L´Eco di Bérgamo, Nico Orlandi escreveu: «Não foi fácil ao Atalanta alcançar a vitória, porque o adversário se mostrou forte, organizado, disposto a tudo na defesa. O Sporting foi grande, poderoso, como estávamos longe de supor. Todos nos lembramos em Itália da forma de jogar e da verve do Benfica. Não cremos que o Sporting tenha muito que invejar à outra equipa da sua cidade, se excluirmos aqueles lampejos individuais que costumam iluminar as exibições dos que foram campeões europeus.»

FERNANDO MENDES COM 50 MINUTOS AO PÉ COXINHO (E A AFIRMAR QUE MAIS DIFÍCIL QUE EUSÉBIO NÃO HAVIA…)

Fernando Mendes, que, lesionando-se, fez 50 minutos ao pé-coxinho, porque esse era ainda o tempo em que não se podiam fazer substituições, saiu do campo mantendo intocada a fé: «Se rematarmos à baliza em Lisboa, podemos passar...» 

Entre o primeiro e o segundo jogo com o Atalanta, Fernando Mendes deu entrevista a A Bola em que revelou que o jogador mais difícil de marcar que já tivera era... Eusébio: «Dando-lhe largas, é impossível segurá-lo» - e saltou entre sonho de Bérgamo para Lisboa: «Contra o Atalanta lá, fizemos o jogo que o sr. Gentil Cardoso nos ordenou que fizéssemos: sem uma defensiva excessiva e aproveitando sempre o ataque. Não ganhámos porque, quando faltavam 25 minutos para o termos da partida, houve a infelicidade de Mascarenhas, que atirou a bola à trave, depois de remate de Lino que embatera igualmente na trave. Esse lance, a ser concretizado, dar-nos-ia a vitória, dado que o golo redobraria o nosso ânimo. Os golos dos italianos foram fortuitos. Fomos superiores, sem dúvida, ao Atalanta e em Alvalade vamos mostrá-lo...» 

Vitória do Sporting por 2-0 em Alvalade, levou a terceiro jogo. Foto: ASF

Em dor continuava Fernando Mendes: «Quando faltavam cinco minutos para o termo da primeira parte, na marcação de um canto, saltei com um adversário. Na queda, torci o pé e o joelho – o joelho que me fora operado no ano passado... – o que me fez continuar e acabar o jogo em precárias condições. Pensei que fosse pior, que fosse o menisco, dadas as dores insuportáveis que sentia. No entanto, os cuidados do departamento médico do Sporting recuperaram-me. Sinto ainda ligeira dor que, todavia, me não impede de jogar. Depois de aquecer, desaparece... E mesmo que não desaparecesse, se o treinador quisesse que eu jogasse a segunda mão, jogava na mesma.» (Jogou.) 

NAS MENSAGENS DO TREINADOR (QUE ATÉ GRAMOFONE USAVA), O AVISO PARA NÃO RECLAMAR COM ÁRBITROS 

Antes da segunda mão com o Atalanta, o Sporting defrontou em Alvalade o Alhandra para a Taça de Portugal. No túnel de acesso ao campo, Gentil Cardoso mandara pregar dois quadros, dois quadros com dois pensamentos e uma só finalidade. Estava num em letras garrafais: Lembre-se sempre, você não está só na equipa – e, no outro, estava igualmente em carateres gigantes: Não adianta reclamar, o árbitro é a maior autoridade lá dentro. 

Era mais um sinal do espírito de Gentil Cardoso. Que por ser como era, no Brasil era tratado como o «treinador-filósofo» – que, às vezes, ia para o campo com um... gramofone. Que era para que, lá dentro, nos treinos, os jogadores não usassem desculpa de que não o tinham escutado bem. Era, também, frasista como nunca antes se vira no futebol. Foi ele o primeiro a dizer: O futebol é uma caixinha de surpresas. E o primeiro a usar a zebra como sinónimo de surpresa e inesperado, inspirado no jogo do bicho – o jogo de lotaria ilegal que usando 25 animais, não tinha a zebra. 

Ainda em Bérgamo, ao olhar para o placard que marcava 2-0, Mário Lino não o escondera: «Esta vitória estaria bem, mas ao contrário – e pelo menos vamos forçar o terceiro jogo». Acertou. Porque, em Alvalade, o Sporting venceu por 3-1 e não havendo ainda regra a determinar que golos fora valessem mais para desempate – o desempate saltaria para Barcelona. 

Já com o guarda-redes italiano no chão de braço partido, a recarga de Figueiredo para o golo do Sporting. Foto: ASF

NO GOLO DE FIGUEIREDO, O BRAÇO PARTIDO DO GUARDA-REDES

Figueiredo (que passara a pré-época a treinar-se sozinho – ou melhor: fazia a preparação física com os companheiros, mas, depois, quando chegava a hora do treino de conjunto, mandavam-no embora...) voltou da travessia de deserto e logo se viu que com ele o ataque do Sporting tinha mais frenesim, mais poder de fogo, um outro elã.  

Dele foi, aos oito minutos, o 1-0 – e, mais do que do golo sofrido, os italianos queixaram-se de «circunstância altamente desfavorável» que se soltara do destino nesse instante: na sequência de centro de Morais, Pizzaballa, o guarda-redes do Atalanta, saltou em choque com Figueiredo, caiu sobre o seu próprio corpo. Estatelado no relvado, na recarga a corte de Gardoni para a trave, Figueiredo tocou, lesto, a bola no fundo da baliza deserta.

Contorcendo-se em dores e esgares, de pronto se percebeu o drama: Pizzaballa fraturara o braço esquerdo – e Calvanese, seu avançado-centro, foi, então, para baliza (por ser ainda tempo em que não havia substituições). De maca o transportaram para o posto médico – e quem dele tratou foi Aníbal Costa, o médico do Sporting. «Retirou-o do choque em que se mostrava», fez-lhe a imobilização do braço através de «revolucionária técnica de ligadura em gerdy». (Com isso, evitou que tivesse de sofrer complicada intervenção cirúrgica, limitando-se a paragem de quatro semanas.) 

Atalanta jogou mais de 80 minutos com um avançado-centro a guarda-redes (e ele só sofreu dois golos). Foto: ASF

Estava Pizzaballa já de braço ao peito e fato e gravata, sentado na cadeira que lhe arranjaram ao lado do seu massagista, para ver a parte final do jogo, quando o repórter de A BOLA lhe apanhou o murmúrio: «Saltei a cruzamento, fui empurrado, caí. Ato contínuo, sofri um pontapé na mão esquerda. Considero, contudo, que não houve da parte do avançado-centro do Sporting, intenção de me lesionar. Mas falta foi!» Não vira Christensen empatar aos 18 minutos mas já vira Mascarenhas fazer o 2-1 aos 63 –  antes do golo de Bé que levou G.B. Radici a telegrafar de Lisboa para a redação da Gazetta dello Sport: «Sem guarda-redes ao fim de oito minutos de jogo e afetados por um golo discutível, Nielsen, Gardoni, Colombo e companhia não perderam a cabeça. Perante tantas e tão grandes adversidades qualquer outra equipa se teria rendido. O Atalanta, porém, encontrou na adversidade o espírito, o entusiasmo e a firmeza necessários para sobreviver. E até poderia ter ganho se uma magnífica jogada pessoal de Domenghini tivesse sido coroada com um golo quando o público já dava sinais de intolerância. A violenta reação que se seguiu a essa jogada foi fatal para o Atalanta, mas os portugueses não podem felicitar-se pelos golos que, depois, obtiveram – um verdadeiro guarda-redes tê-los-ia evitado.»

Carlo Alberto Quario, o seu treinador não fugiu à caramunha: «O handicap surgido com a lesão do Pizzaballa inibiu-nos de alcançar outro resultado. É a única explicação que encontro. A única não: o primeiro golo do Sporting foi irregular, existiu um penálti que o árbitro, aliás, assinalou, mas, depois, decidiu olvidar a falta e assinalar o golo…» 

DA «SAÍDA DO GOLEIRO» AOS «EFEITOS PSICOLÓGICOS DEMOLIDORES» NO SPORTING…

Que o Sporting venceu bem, mas venceu sem brilho, admitiu Gentil Cardoso: «Pareceria que a saída do goleiro só traria vantagem para o Sporting, mas não, teve efeitos psicológicos demolidores no nosso time. Tínhamos jogado até aí com acerto e determinação, dominando os italianos, que bem perturbados se mostraram com esse assédio ameaçador do Sporting. Marcámos golo, estava tudo bem encaminhado. Só que aquele efeito psicológico positivo do golo foi pura e simplesmente neutralizado pelo efeito psicológico negativo que trouxe à minha equipa a saída do Pizzaballa. Com esse incidente, embora pareça paradoxal, foram os italianos que serenaram e se recompuseram e foi o Sporting que perdeu por completo o fio de jogo. O golo deles, um golo frio, arreliador, inesperado, mais veio acentuar a perturbação dos meus jogadores. Mas note: foi golo irregular, em impedimento. Depois, o nosso ataque ressentiu-se bastante da atuação verdadeiramente nula de um jogador...»

Manuel Marques, o massagista que teve de tratar também de mazelas pouco habituais nos jogadores do Sporting

GENTIL A DIZER QUE BÉ FOI «NULIDADE» E A FALAR DAS AMIGDALITES DE HILÁRIO E MASCARENHAS (E DO «DISTÚRBIO» DE GÉO)

Mário Zambujal (que haveria de tornar-se mais do que o notável escritor de Crónica dos Bons Malandros) era um dos repórteres de A BOLA em Alvalade – e insistindo e reinsistindo em perguntar quem fora o jogador da «atuação verdadeiramente nula», Gentil Cardoso não o escondeu mais: «Foi Bé. Nada produziu. Vá lá, marcou o terceiro golo. Não, não vou mantê-lo no ataque, em Barcelona. Além da noite má de Bé, houve outra coisa: na véspera tive o Hilário e o Mascarenhas com amigdalite, logo os dois – e nem por esse troço deixaram de jogar. E ainda tive o Géo a contas com distúrbio gastrointestinal. Portanto, não precisarei de dizer que esses jogadores não estavam na sua melhor condição, né, meu moço?»

JOGADORES MORTOS NO DRAMA DA BARRAGEM QUE PÔS MANUEL MARQUES, O MASSAGISTA DO SPORTING, EM PEDITÓRIO

No final do jogo, tocaram Alvalade as primeiras notícias da tragédia. Não fora esse o jogo que a RAI transmitira, fora o Real-Glasgow Rangers – e, para o ver, os cafés de Longarone apinharam-se de gente. Era cidade pequenina, 100 quilómetros a norte de Veneza, plantada no sopé do monte Toc, nos Alpes – e vivia empolgada com as façanhas do seu clube de futebol: na época anterior só não vencera um jogo, chegara fulgurante à seconda categoria, que era como se chamava à segunda divisão. Nessa noite, deslizamento da montanha inundou a barragem construída no rio Vajont, 270 milhões de metros cúbicos de pedras e terras provocaram a «onda assassina» que, ultrapassando os 250 metros de altura, matou duas mil pessoas. 

Entre os jogadores do Longarone que morreram estava a sua estrela: Giorgetto de Cesare, que o Bolonha anunciara que queria contratar, depois de saber que, três dias antes marcara cinco golos. Dos que estavam na vila um só se salvou, com uma perna destroçada: Ausente. Incólume ficou Franco De Biasio, mas porque estudava longe, em Conegliano. Ao voltar a casa, não tinha casa: apenas destroços – e por baixo deles tinham ficado o pai, a mãe, a irmã. O mesmo aconteceu a Franco Concolato – que nesse mesmo dia chorara ao apanhar o autocarro que o levava para tropa não imaginando que, assim, o tirava da tragédia.

O coração de Manuel Marques, massagista do Sporting, agitou-se: já em Barcelona, decidiu fazer coleta entre jogadores e treinadores – e juntando cerca de 2500 escudos, pediu ao presidente do Atalanta que os entregasse para ajuda às vítimas de Vaiont. 

Gentil Cardoso com Mário Cunha, o chefe do futebol do Sporting

JORNALISTA ACHAVA QUE O TREINADOR DO SPORTING ERA O… ATOR DE ORSON WELLS! 

G.B. Radice, repórter da Gazetta dello Sport, encontrou-se no hotel com Vítor Santos, enviado especial de A BOLA a esse terceiro jogo contra o Atalanta, no hotel do Sporting – e exclamou-lhe: «Querem ganhar? Pois, então, marquem um golo nos primeiros 10 minutos. E não só nos da primeira parte, também nos da segunda. O Atalanta é uma equipa que, como certos carros, leva o seu tempo a aquecer. A vossa chance está em surpreendê-la a frio. Não se esqueçam disso. Porque senão, não me parece que seja outro o desfecho que não a vitória dos meus compatriotas...»

Precisamente nesse momento, entravam no hall, Horácio de Sá Viana Rebelo (o presidente que haveria de tornar-se Ministro da Defesa de Marcelo Caetano, após a morte de António Oliveira Salazar), Mário Cunha e Gentil Cardoso – e Vítor Santos lançou a Radice o sugestão: «Por que não vai dizer tudo isso ao treinador do Sporting, aquele senhor que vai ali, com o seu andar balanceado e desajeitadão?» 

Radice mirou-o e remirou-o – e, de olhos esbugalhados, comentou, espirituoso: «Não, não posso, porque o treinador do Sporting não pode ser o Edward G. Robinson.» Riram-se muito e concordaram que sim, que Gentil era fotocópia perfeita do Edward G. Robinson que fizera O Estrangeiro com Orson Wells. Todavia, não – não foi nada como Radice dissera que teria de ser que foi. 

SEGREDO DO SPORTING NO TERCEIRO JOGO NA BOCA DO ARGENTINO…

O Sporting não marcou nos primeiros 10 minutos, marcou aos 24 por Mascarenhas (e aos 20 até já estava a perder). Com 1-1 se chegou ao fim dos 90 minutos. No prolongamento Lúcio e Mascarenhas selaram a passagem à segunda eliminatória e Calvanese fechou a questão com frase sintomática: «Sim, o Sporting ganhou bem porque teve... más aire». 

Com esse «más aire», mostrava o que era: argentino de nascimento, apesar de se ter naturalizado italiano – e mostrava, ainda melhor, por que tudo terminara como terminou: «Confesso: espantoso o modo como o Sporting jogou o prolongamento. Parecia que tinham quatro pulmões. Eu, por exemplo, já não podia correr mais. Mas eles – uff! – como se mantinham frescos! Só por isso mereceram ganhar. E já que nos ganharam, agora só quero que ganhem a Taça das Taças» (e, foi mesmo o que se sabe…)

Para Calvanese, o segredo dos sportinguistas foram os seus «quatro pulmões». Foto: ASF

O desempate fez-se no Sarriá, o campo do Espanhol. Não se chegando sequer a 5000 bilhetes vendidos, arrecadaram-se 113 340 pesetas (qualquer coisa como 56 contos). Como as despesas de organização ultrapassaram 70 mil pesetas, o lucro que Sporting e Atalanta levaram foi pouco (cerca de 10 contos). Médico em internato tinha salário de 600 escudos, assistente na Faculdade de Medicina recebia 2800 – e Fernando Namora escreveu (provocador) que, em Portugal, o médico era a única pessoa que tinha como profissão ajudar a morrer os que nunca se sentiram vivos

DA LEVEDURA PARA SUBSTITUIR CARNE AOS DINHEIROS DOS ÁRBITROS…

Pelos jornais, aparecia reclame assim: Superlevedura Gayelord Hauser. A refeição mais simples pode ser uma refeição completa. A superlevedura é um alimento tão natural como a carne e os legumes: 25 escudos em pó, 30 escudos em comprimidos –desafiando os desportistas a tomarem-no «para que ficassem «mais fortes». 

A Farinha Amparo prometia o mesmo. Sobre o verde da embalagem, podia ver-se desenho de atleta a correr numa pista – e a bordejá-lo frase que dizia: Para Grandes Desportos, Grandes Alimentos – e entrara já para o linguajar do quotidiano através de chistes como: Olha, o fulano tirou a carta de condução na Farinha Amparo... Olha, ao beltrano saiu-lhe o curso de advogado na Farinha Amparo. 

Nesse ano de 1964, prometia que os adeptos do Sporting, do Benfica, do FC Porto, do Belenenses, do Atlético e do V. Setúbal que enviassem 12 «provas de compra» recebiam na volta do correio um emblema de ouro («de ouro mesmo»!) do seu clube. Era trigo limpo, farinha amparo – como no jargão que, no futebol, se usava com a mesma frequência com que se usava o do árbitro a precisar de óculos – ou às vezes pior no mais impuro vernáculo. Os árbitros ganhavam 600 escudos por jogo na I divisão, 350 na II e 160 nas demais competições – e a final da Taça rendia 1000 escudos. 

O prémio de passagem dos jogadores do Sporting não chegaria hoje a 9000 euros. Foto: ASF

PRÉMIO PELA ELIMINAÇÃO DAVA PARA 10 «GRAVADORES DE SOM PARA CASSETES»

Pela eliminação da Atlanta, cada jogador do Sporting já sabia que tinha direito a bónus de 20 contos (que segundo o conversor da Pordata seriam hoje 8 992 euros). Verba assim era o que ganhavam de ordenado em cinco meses. Nunca nenhum recebera tanto de prémio – e, se o Benfica de Riera tivesse ganho, na época anterior, a Taça dos Campeões ao AC Milan, cada um dos seus jogadores teria direito a 50 contos. 

Por esse tempo, era fácil tropeçar em A Bola num reclame aos «gira-discos da moda» que a Casa J. Gonçalves, ao Saldanha, vendia a 1150 escudos. E se se quisesse algo ainda mais «revolucionário» havia o «gravador de som para cassetes» a 1900 escudos.