ENTREVISTA A BOLA «Sinto-me muito mais português do que escocês»

Ian Cathro supreende desde logo por falar a nossa língua com um sotaque quase perfeito. Como chegou aí é o que o treinador do Estoril nos conta nesta parte da entrevista a A BOLA. Isso e muito mais!

– Fala um português, eu diria, perfeito…

– Quase [risos]. 

– E era mesmo por aí que eu começaria: como fala tão bem português, sendo algo tão raro nos britânicos (curiosamente, Ryan Gould, também escocês, fala igualmente muito bem português…)

– Ele também fala bem, sim. Às vezes, quando converso com ele, falamos em português, só para andar ali na brincadeira. É um bocado de treino. E até podemos falar um bocadinho do Ryan Gold, porque eu comecei a treinar jovens,  mas sempre com uma ideia, uma ambição, pensando que podemos fazer algo melhor do que os limites normais do futebol escocês e, também, culturalmente. Sei que ele [Gauld] também tinha essa vontade de sair dali, para aprender de uma forma diferente, abraçar desafios diferentes.

Ian Cathro com os jornalistas João Pimpim e Rogério Azevedo durante a visita a A BOLA

– Como conheceu Ryan Gauld?

– Lembro-me de fazer aulas fora do campo com o Ryan, também a falar espanhol e outras línguas.  O mundo tem mais do que aquilo que está mesmo à frente dos nossos olhos. Foi sempre algo que eu quis fazer.

– E não quis jogar futebol? Pergunto isto, porque o Ian começou a carreira de treinador aos 23 anos.

– Eu queria jogar, queria tanto jogar, mas não deu. Tive uma lesão com 15 anos, no cruzado [ligamento do joelho]. Depois voltei, e aconteceu a mesma lesão. 

– A lesão que é o pesadelo dos jogadores…

– Sim, mas tenho de dizer que não ia fazer uma grande carreira. Portanto, comecei a treinar logo e decidi fazê-lo uma academia privada para trabalhar com a minha ideia.  Depois o Dundee United fez uma proposta, para integrar todo o meu trabalho dentro do clube. 

– A verdade é que, logo depois, ali pelos 25 anos, dá logo um salto para Portugal, para o Rio Ave, para a equipa técnica do Nuno Espírito Santo, em 2012. Como aconteceu isso?

– Eu inscrevi-me no curso de treinadores na Escócia e o Nuno também.

Ian Cathro, com 25 anos, quando se juntou à equipa técnica de Nuno Espírito Santo no Rio Ave

– Sim, iam muitos portugueses fazer o curso à Escócia.

– Sim, muitos. Acho que é porque fazem mais cursos do que cá, em Portugal. E, ao longo do curso, eu e o Nuno [Espírito Santo] começámos a falar e foi um momento muito importante na minha vida. Tudo começou aí. 

– E o que encontrou em Portugal, em Vila do Conde?  Foi um choque grande ou era também já esse desejo de correr mundo?

– Eu tinha tanta vontade. Eu sabia que, para fazer uma carreira diferente no futebol, eu precisava de ter alguma experiência diferente. E tinha de ser fora do meu país. Naquele momento foi muito difícil. Era a minha primeira experiência fora de casa, mas tinha grande vontade para conseguir aprender e entrar bem neste desafio.  E tive muita ajuda, obviamente do Nuno, do resto da equipa técnica, também dos jogadores. 

Ian Cathro com Nuno Espírito Santo no Valência (foto: Imago)

– E não havia quem questionasse o que estava um jovem escocês de 25 anos a fazer numa equipa técnica portuguesa?

– Claro que sim. Um jovem que não falava português… Era estranho, sim. Mas tive muita ajuda.

– É então que começa a falar português, presumo…

– Sim, foi aí. A pouco e pouco. Nos primeiros seis meses, foi muito difícil. Mas passou muito por perder a vergonha de não ser capaz de falar bem, de me explicar mal, de cometer muitos erros. Mas, depois de perder a vergonha de fazer as coisas, consegui mais ou menos. 

Há uma frase que costumo dizer e que é o que realmente sinto: Portugal mudou a minha vida!

– Sendo o seu inglês nativo uma espécie de língua universal, é muito interessante que tenha apostado em aprender português.

– Eu senti mesmo a necessidade de mostrar a minha vontade de aprender. Eu sou estrangeiro, então eu tenho de fazer o esforço. Acho que isso foi muito importante.

Oblak e Ederson em agosto de 2012 quando estavam juntos no Rio Ave (foto A BOLA/Helena Valente)

– Trabalhou nessa altura com dois guarda-redes que vieram a ser dois dos melhores guarda-redes do mundo, Ederson, hoje no Manchester City, e Oblak, do Atlético Madrid. Curiosamente, os dois ao mesmo tempo no Rio Ave

– Ver neles umas estrelas nessa altura é, hoje, muito fácil quando olhas para trás. Sabíamos que havia muito talento. Naquele momento, Oblak estava mais preparado, talvez pelo carácter. Eles são pessoas diferentes. Mas, mesmo com o Ederson, era muito óbvio que ele tinha coisas diferentes.  E que ao longo dos anos mostrou, obviamente. Era para mim uma demonstração do valor que o futebol português já tinha, como criador e captador de talento. Há aqui muito talento.

– Há também uns figurões no meio dessas equipas, que era o caso do Ukra também nessa equipa do Rio Ave.

– Sim, era muito bom [risos]. Ele era a alma daquele balneário. Havia boas pessoas, conseguimos ter uma boa dinâmica. Ele agora vai tornar-se uma estrela de televisão, não é? [risos] Tenho de me juntar com ele.

– Fala regularmente com muito carinho do futebol português. Há também paixão pelo nosso País, para lá do futebol?

– Há uma frase que costumo dizer e que é o que realmente sinto: Portugal mudou a minha vida. Essa mudança para sair da Escócia: entrar em Portugal, trabalhar no futebol português, trabalhar com o Nuno [Espírito Santo], trabalhar com a equipa técnica, viver todas essas experiências.  Mesmo quando fomos para Valência [2014/15], ou quando estávamos no Wolves [2018 a 2022], a verdade é que, no dia-a-dia, estávamos num mini Portugal, pela forma de trabalhar, pela língua, pela cultura, pelo modo como interagíamos uns com os outros.

– Que diferenças são essas que encontrou entre Portugal e Escócia?

– Desde logo, o valor da família, que é diferente no meu país. Lá é mais frio, pelo clima e, também, talvez, na cultura. Não existem tantas rotinas de dar importância aos momentos com a família. Eu gosto muito mais do lado português, nesse sentido. Também estou a fazer um esforço para só falar português com a minha filha, enquanto a minha esposa fala inglês com ela. A minha esposa percebe um bocado português, pela experiência que tivemos com as famílias de portugueses. 

Ian Cathro, treinador do Estoril, em entrevista a A BOLA

– E o que o apaixonou no futebol português?

– Eu senti logo uma grande diferença... Lembro-me muito disso e é interessante estar a falar disso aqui n’A BOLA. Ler uma reportagem do último jogo na Escócia: falam muito do árbitro (bem, aqui também falam do árbitro), mas falam muito do ambiente. Não escrevem muito sobre o jogo, do que realmente aconteceu, a parte do futebol. Depois, apanhas o avião, chegas aqui, tomas um café, lês os jornais e há mais conversa sobre futebol. Dá-te uma indicação sobre a cultura, de falar do futebol, pensar no futebol. Tenho de dizer também que eu nunca me senti ligado à cultura escocesa ou à cultura britânica, a nível do futebol.

– Sente-se mais português, é isso?

– Eu sinto-me muito mais português. Pela minha experiência, por estar aqui, pela minha forma de pensar. E, depois, provavelmente também a minha forma de estar é mais inclinada para este lado [Portugal] também.

Ian Cathro veio conhecer as novas instalações de A BOLA

– Também ajudou ter treinado uma extensa lista de portugueses, como Vitinha Pedro Neto, Rúben Neves, Diogo Jota, Nelson Semedo, Pedro Gonçalves, João Moutinho, Rui Patrício, não? 

– Tantas boas memórias. Porque, além de grandes jogadores, estamos a falar de boas pessoas.  Principalmente, o grupo no Wolverhampton. O Nuno [Espírito Santo] conseguiu criar um grupo, um ambiente realmente especial. E isto foi feito com bons jogadores e boas pessoas. Até tenho mais memórias da parte pessoal do que do futebol e isso é algo muito importante na nossa vida, porque andamos sempre de um lado para o outro e o que fica são essas relações, esses momentos importantes, essas memórias com as pessoas

– Há alguma história que recorde mais?

– São muitas, são muitas. A nossa filha nasceu em Londres e estava a ter algumas dificuldades em dormir. Eu tinha de ir para os treinos e acho que a esposa do Diogo Jota me enviou alguma coisa. E disse que ia ajudar muito. E enviou direto para a nossa casa. Depois, à noite, chego e a bebé está a dormir. E isso fica para a vida. Quase uma grande família que se forma, pois as outras famílias sabem das dificuldades e querem ajudar. E isso não tem nada a ver com futebol, mas é bonito.