Manuel Galrinho Bento, o maior guarda-redes da história do Benfica, deixou-nos a 1 de março de 2007, aos 58 anos, e de então para cá, a história, vista através da janela do tempo, concedeu-lhe o estatuto de lenda, com assento no Olimpo encarnado, onde repousam Eusébio, Mário Coluna ou Fernando Chalana. No dia 28 de fevereiro de 2007, na Gala do 103.º aniversário do Sport Lisboa e Benfica, realizada no Casino do Estoril, vi-o pela última vez. No meio da multidão, primeiro, e depois colocados em mesas distantes, não chegámos a cumprimentar-nos fisicamente, apenas trocámos acenos, porque o mundo não ia acabar no dia seguinte, e certamente não faltariam ocasiões para estarmos juntos. O pior é que, para o Manel, o mundo acabou mesmo no dia seguinte, vítima de um enfarte fulminante. Ao princípio da tarde de 1 de março, a notícia foi-me dada pelo Pedro Sousa, que pretendia um comentário meu para a Rádio Renascença. Foi um soco no estômago, um aperto na alma, um sei lá quê de revolta contra o destino que, cruelmente, ceifara uma vida que ainda tanto tinha para viver e tanto para dar. No dia 3 de março, um sábado, o funeral do Manel realizou-se à tarde, mas como tinha de fazer a crónica do D. Aves-Benfica não pude estar presente. Porém, como tinha de lhe dizer adeus, fui, de manhã, à igreja do Barreiro onde estava o corpo de Manuel Bento, velado àquela hora apenas pela mulher Gertrudes, e pelo filho mais velho Rogério (que costumava, ainda garoto, ir treinar connosco), já que a multidão de amigos e admiradores tinha reservado o velório da véspera, e o funeral que se seguiria, em Lisboa, para prestar-lhe homenagem. UM MOMENTO SURREAL Bento estaria, esta semana, a celebrar os 75 anos. Nasceu a 25 de junho de 1948, na Golegã. Aqui o recordo. O que vou escrever a seguir, vou fazê-lo depois de ter pedido autorização à família de Manuel Bento. Há coisas que ficarão só para nós, para a Gertrudes, para o Rogério e para mim, mas algumas outras podem ajudar a perceber melhor a personalidade do Manel Galrinho Bento. Quando cheguei, sentei-me ao lado da Gertrudes e do Rogério, a dois metros da urna, com o corpo do Manel Bento, onde não faltavam umas luvas de guarda-redes. E durante mais de uma hora desfiámos memórias, contámos histórias, e até nos conseguimos rir com algumas delas, que iam do espírito indomável que o caraterizava, ao mau feitio matinal, que era outra das suas imagens de marca. Nesse contexto, na igreja, a dois passos do corpo sem vida do Manel Bento, a Gertrudes disse-me, de forma sentida e repleta de amizade, algo que nunca mais esquecerei. «Sabes», começou, «tu foste o guarda-redes que o Manel mais temeu que pudesse tirar-lhe o lugar, e falámos muitas vezes sobre o assunto.» Explicando melhor: a época anterior à minha chegada ao Benfica, 1981/82, não tinha sido das melhores do Bento, marcado pela expulsão em Alvalade depois de um desentendimento com Manuel Fernandes. Já eu vinha de uma boa temporada no Portimonense, que culminou com a chamada à Seleção Nacional, para um Brasil-Portugal em São Luiz do Maranhão, onde o Manel e eu fomos os guarda-redes convocados. Daí a ‘desconfiança’ do Bento (que batalhara antes com fantásticos guarda-redes como José Henrique, António Fidalgo ou Jorge Martins), quando me juntei aos quadros do Benfica, uma desconfiança que, como grande campeão que era, só lhe aumentou a determinação, arrancando para as melhores temporadas da carreira, só precocemente terminada por uma lesão num treino durante o Mundial do México, quatro anos depois. Contava-me a Gertrudes, na presença do Rogério, que a expressão que o Manel mais usava a propósito da minha chegada ao Benfica era esta: «Custou-me tanto a subir o pau de sebo até chegar lá acima, que não vou dar o meu lugar a ninguém.» UM ESPÍRITO INDÓMITO E esta determinação viria a ser levada à prática logo no primeiro jogo da época, um particular na Luz contra o Ferencvaros (4-2), a 27 de julho de 1982, uma segunda-feira. No treino da sexta-feira anterior o Manel Bento fez uma luxação na clavícula, e eu fui imediatamente posto de prevenção para a possibilidade, quase inevitável, de começar a época como titular. Porém, depois de não ter treinado no sábado e no domingo, na tarde do jogo o Manel apresentou-se para jogar, garantindo estar recuperado. E jogou, ajudando à vitória. Porém, nessa manhã, tinha estado na Luz para ser infiltrado e imobilizado, de forma a poder estar apto para a noite. Nesse dia, apesar da desilusão de ter falhado a estreia (que viria acontecer dias depois, nos Estados Unidos), a minha admiração pelo Bento aumentou exponencialmente, e percebi que tinha pela frente alguém a quem, de facto, tinha dado muito trabalho subir o pau de sebo e estava disposto a lutar pelo que era seu. Durante vários anos, sempre que o Manel não pôde jogar (e foram poucas vezes), fui eu chamado à baliza. Mas nunca tive dúvidas de quem era o titular, e qual era o meu papel naquele plantel. Aliás, a meio dessa época, numa viagem de regresso da Madeira, Eriksson sentou-se ao meu lado e procurou consolar-me pela minha pouca utilização, dizendo que para o guarda-redes não havia hipótese de adaptação a outro lugar, ao que eu lhe respondi que tinha a certeza de que, para cada jogo, ele escolhia sempre quem lhe dava mais garantias de sucesso... CSERNAI, MAIER E BENTO Mas, relativamente ao estatuto do Manuel Bento no Benfica, que pelo que representava transcendia em muito um ou outro abaixamento de forma, ou algum golo mal sofrido, foi Pal Csernai que me deu a melhor lição. Estávamos já no terço final da época de 1984/85 e uma tarde, após o treino, o treinador húngaro chamou-me à cabina, algo que sucedia pela primeira vez. E, com a ajuda do intérprete Pedro Magro (à altura estudante de Medicina, depois de ter estudado na Escola Alemã, e mais tarde médico do Benfica e da Seleção Nacional) Csernai, que era de poucas palavras e trato instável, apanhou-me de surpresa quando me disse, sem hesitações: «Estou muito satisfeito contigo, tens trabalhado bem e és um bom guarda-redes. Mas o Bento é como o Sepp Maier. Vais ter de ficar à espera que tenha um desastre de automóvel para poderes ser titular.» Maier, o melhor guarda-redes alemão de sempre, quando era treinado por Csernai no Bayern, em julho de 1979, teve um acidente de viação do qual não recuperou, terminando aí a carreira. Daí a analogia do técnico húngaro. Saí da cabina do treinador atónito, sem saber se devia estar feliz pelo elogio, ou triste pelo veredito. Fui direitinho ao Bento, contei-lhe a conversa, e rimos da situação a bandeiras despregadas. UMA QUESTÃO DE CARÁTER A terminar, para que se fique com uma ideia precisa do caráter do Manuel Bento, há um episódio que diz tudo. A 10 de abril de 1983, na 25.ª jornada do campeonato, Eriksson deu a equipa para a receção ao Rio Ave e na baliza estava o Manuel Bento. Porém, durante o aquecimento do guarda-redes (que normalmente era feito pelos suplentes) correspondi a um cruzamento da direita do Zé Luís com uma forte cabeçada, desferida quase da entrada da área, que apanhou o Bento desprevenido. Quando olhei para a baliza, vi-o com as mãos, de luvas postas, na cara, e fui ver o que se passava. Mal ele afastou as mãos, o sangue jorrava-lhe do nariz abundantemente, e fomos imediatamente para a cabina. Faltava um quarto de hora para o jogo começar, e Eriksson, que desceu connosco, apercebeu-se da gravidade da situação e mandou-me vestir a camisola um. Foi com um nó na garganta, porque tinha estado, embora sem culpa, ligado à lesão do Bento, que comecei a descer as escadas rumo ao relvado, e nesse momento Sven-Goran Eriksson apenas me disse, «keep the zero». E assim foi: o jogo complicou-se, a fase da época era decisiva, e empatámos mesmo zero a zero. Na jornada seguinte, o Manel Bento ainda andava às voltas com o nariz partido e voltei a jogar, na Amora, onde vencemos por 3-1. A seguir, em Craiova, Bento regressou à titularidade numa jornada histórica para o Benfica. E durante todo o período em que sofreu com a lesão e se viu afastado da equipa, nunca teve uma palavra de recriminação para comigo. Nem então, nem depois. E há coisas que não se esquecem...